Ciganos, os indesejados

 

Ciganos, os indesejados

Igor Shimura

 

 

Era umas três horas da manhã quando acordei com grande susto ao som de estouros e luzes cegantes na tenda do meu compadre Cassiano, no município de Rolândia-PR, no inverno de 2016. Eu estava num colchão improvisado no chão, próximo da saída frontal da tenda. Não só eu, mas todos os moradores do Acampamento Jair Alves (ciganos da etnia Calon), despertaram assustados, pegos de surpresa pelos sons, luzes e forte cheiro de fumaça que tomou conta do lugar. Lembro-me que ao acordar dessa forma brusca demorei alguns segundos para tomar consciência do que estava acontecendo.

Foi tudo muito rápido. Em tom desesperador, ainda deitado, meu compadre ergueu a voz, como que gritando, e perguntou ao seu tio, Diéque (que estava na barraca ao lado), o que havia acontecido. Também sem saber o que dizer Diéque sugeriu que “talvez pudesse ter ocorrido um curto-circuito na fiação elétrica” do acampamento. Enquanto ainda falava ouvimos o som da ignição do motor de um veículo na rua, logo atrás da tenda, que saiu em alta velocidade. Com isso concluímos que havíamos sido alvos de um ataque ciganofóbico.

Os criminosos haviam disparado fogos de artifício dentro da tenda onde dormíamos através da abertura que conectava a lona lateral à lona superior, o que permitiu que os explosivos se projetassem por todo o interior da barraca. Uma das bombas explodiu à poucos centímetros da cabeça da minha afilhada, Taciane, que tinha apenas nove meses. Aquilo nos encheu de indignação e medo.

Tenho uma relação muito intensa com esse grupo, que conheço desde 2002, e desfruto de grande amizade com muitos ali. Esse vínculo me levou a participar de algumas decisões da liderança por diversas vezes. Vez por outra eu dormia no acampamento e por mais que de vez em quando ouvisse relatos sobre ataques físicos e verbais eu nunca tinha presenciado algo como aquilo. Naquele ano, 2016, eu realizava uma pesquisa etnográfica com o grupo.

Essas famílias são itinerantes que comumente permanecem entre trinta e noventa dias em cada cidade por onde passam. O Acampamento Jair Alves, que na ocasião do referido evento contava com cerca de 70 pessoas, faz parte de um conjunto de acampamentos ciganos sulistas que somados chegam a cerca de 700 pessoas. Infelizmente é comum que moradores não ciganos, especialmente durante as madrugadas em finais de semana, dirijam palavrões e ameaças contra as pessoas do acampamento, ofendendo sua honra e dignidade dizendo coisas do tipo “povo amaldiçoado”, “vamos matar vocês”, “vocês fedem”, “sumam da minha cidade” etc. 

Desde as primeiras experiências de pouso em tendas, mais especialmente em acampamentos instalados em áreas urbanas, ouço esses xingamentos e sempre me retorço de raiva e indignação, desejando tomar alguma medida e oferecer denúncias aos órgãos competentes. No entanto sempre respeitei os apelos contundentes dos chefes, que me pedem para ignorar essas provocações violentas, já que, segundo dizem, “reagir poderia provocar atos vingativos ainda piores”, atos que quem vive ali sofreria posteriormente, enquanto eu voltaria para o conforto da minha casa, numa vida não itinerante e longe das condições de vulnerabilidade. Os apelos dos chefes evidenciam o medo do enfrentamento de retaliações por parte de não ciganos.

Ao que parece, segundo a mentalidade predominante no grupo, é melhor tentar ignorar e resistir as violências verbais do que reagir e enfrentar coisas piores. Mas o que pode ser pior do que ser agredido por um agressor convicto de que seu crime não será punido? Os chefes sempre me dizem o que todo cigano já sabe: a polícia, a sociedade em geral e o Estado nunca darão razão aos ciganos quando esses tentarem se defender, mesmo quando atacados. E esse descaso evidentemente racista e preconceituoso faz parte do conjunto de elementos que afetam profundamente a estima e o sentimento de pertencimento étnico do cigano itinerante ou não no Brasil. "Ser cigano", dizem, "ser alvo de perseguições". 

As falas desses que são agredidos cotidianamente demonstram o quanto os ciganos são indesejados por uma sociedade ampla excludente, fato que tem gerado graves consequências estruturais para esse povo, que vive nos escombros do sistema, invisível em termos de direitos e perfeitamente visíveis diante dos mecanismos de opressão.

Com um vasto histórico de perseguições as comunidades ciganas itinerantes, geralmente mais vulneráveis, desenvolveram mecanismos como que “anestésicos” de proteção e sobrevivência, sendo um deles o silêncio diante de xingamentos e ataques ciganofóbicos. Esse silenciamento cigano diante da violência se assemelha ao que ocorre no mundo inteiro ao longo da história, nos mais diferentes contextos.

Se levarmos em consideração alguns relatos poderíamos concluir que essa aparente passividade pode estar associada ao medo de ciganos em situação de vulnerabilidade em relação aos policiais. Moonen (2000, p. 56) conta que “em praticamente todos os países da Europa Oriental, os ciganos aceitam a violência policial” porque, como diz Marushiakova (apud MOONEN, loc. cit.) “quando a polícia decide combater alguém, será os ciganos porque eles não conhecem seus direitos, e não costumam reclamar”.

Na referida noite da agressão com fogos de artifício fiquei tão indignado que não fui capaz de atender aos pedidos do chefe Jair. Eu e Cassiano nos dirigimos imediatamente ao 15º Batalhão da Polícia Militar que ficava a cerca de trezentos metros do acampamento, na esperança de que os policiais de plantão pudessem pegar uma viatura de sair em busca de algum veículo suspeito na região. Apesar de termos sido educadamente atendidos por dois policiais, eu duvidei que eles realmente tinham levado a sério nossa denúncia. Nos asseguraram que fariam “uma ronda” ao redor do acampamento na sequência, coisa que não sabemos se de fato aconteceu. Além disso apenas nos orientaram a registrar um boletim de ocorrência no dia seguinte, o que fizemos.

Aquele ataque era mais um episódio ciganofóbico que acontecia naqueles dias, naquele município. Poucos dias depois dois jovens ciganos foram atacados num restaurante que ficava no posto de gasolina próximo do acampamento. Uma discussão sobre o uso do banheiro entre um dos jovens e outro cliente, não cigano, inflamou os que assistiam a cena de forma que alguns motoboys presentes começaram a bater nos dois jovens, que fugiram sob socos e pontapés.

A dona do restaurante tinha conhecidos na Polícia Militar (parentes ou amigos) e no dia seguinte, ao final de tarde, uma viatura parou em frente ao acampamento, como forma de intimidação. Um soldado desceu e chamou os homens ciganos que conversavam em frente à tenda do chefe. Ao se aproximarem, com certo receio, o policial os ameaçou dizendo que deviam deixar o município no dia seguinte, pois “a cidade”, dizia, “pertencia a ele”. Eu não estava lá naquele dia e horário, mas logo após a viatura deixar o local os chefes me ligaram apavorados. Diante disso mudei minha agenda e no dia seguinte, bem cedo, pude acompanhá-los em ações de providências em relação ao ocorrido.

Casos como esses nos levam a concordar com Almeida (2020, p. 26) quando ele diz que o racismo transcende o âmbito da ação individual, mas se manifesta em termos coletivos, de forma que a dimensão do poder como elemento constitutivo das relações raciais configura o poder de um grupo sobre outro. “E nesse sentido o controle direto ou indireto de um determinado grupo sobre o aparato institucional é marcada pela racialização e promove a hierarquização étnico-racial, de forma que “as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, op. cit., p. 47).

Diante dos casos de violência ciganofóbica naquela cidade tomamos algumas providências, dentre as quais o registro de boletim de ocorrência na delegacia local, repreensão ao comando da Polícia Militar local, queixa-crime contra a dona do restaurante (que nos implorou para desistir, pedindo perdão à comunidade) e a fixação de uma faixa com a Lei 7.716/1989 (como forma de inibir atos anticiganos). Há muito a ser feito porque sim, os ciganos são indesejados por essa sociedade ampla. E a menos que haja luta e resistência esse cenário tende a permanecer.

 

#LutaCigana

#Indesejados

#RespeitoPelosCiganos

 

Referências bibliográficas


ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020. 

MOONEN, Frans. Rom, sinti e calon. E-Texto nº 1. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2000.  

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