“Calon” ou “Kalom”?

“Calon” ou “Kalom”? 

Igor Shimura

 


Tenho acompanhado, sem grande interesse, algumas conversas entre pesquisadores e ativistas sobre o etnônimo Calon, onde se apresentam dúvidas sobre a “escrita correta”. Oras, não existe uma "escrita correta”, mas convencionamentos que partem principalmente do diálogo da academia com ciganos, considerando questões sociolinguístas. A maioria das produções acadêmicas, artigos jornalísticos e textos outros, usa “Calon”, não “Kalon”. É possível também encontrar as variantes Calom, Kalé, Kalom, Khalon, Khalom, Caló etc.

Para mim é um assunto que deve ser tratado pela via da autonomia daqueles a quem se trata, logicamente não partindo de algumas poucas ou uma única perspectiva nativa. Ninguém, indivíduo ou pequeno coletivo, cigano ou não, pode dizer que é "assim" ou "assado" que se escreve "e ponto final"! O que é interessante é a promoção do debate, como faço agora, provocando os interessados (poucos no momento). Sobre isso, em outra ocasião tratei da confusão que existe, especialmente em contexto internacional, em relação aos termos “Cigano” e “Roma”, onde advoguei a autonomia daqueles sobre quem se fala.


Como um determinado povo se autodenomina? Calon, Rom, Banjara, Gitano, Cigano, Domani? É a alteridade que vale, e do meu ponto de vista, pouco interessa o que a “linguagem política internacional” apita... pouco interessa se alguns irão dar “piti” se o “termo politicamente correto” não for usado de acordo com as “convenções” alienadas da maioria das alteridades! O direito de autonominação prevalece! Ou não? (SHIMURA, 2020).


Algumas pessoas, por incrível que pareça, tendem a confundir e/ou a misturar questões relacionadas aos ciganos às questões indígenas, buscando correlações inexistentes em diferentes campos, o que envolve a grafia. Os assim chamados ciganos, divididos em diferentes etnias, ainda não foram contemplados em normas de padronização de escrita, como a Convenção para a Grafia dos Nomes Tribais[1] assinada em 1953 durante a 1ª RBA (Reunião Brasileira de Antropologia), promovido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e que uniformiza a maneira de se escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em línguas portuguesa.

Há alguns anos (acredito que foi em 2012), numa reunião em Brasília-DF, com um grupo de Calon de diferentes regiões do Brasil, juntamente com meu amigo e um dos mais conhecidos sociolinguistas da área, Fábio Dantas de Melo – autor de Os ciganos Calon de Mambaí: a sobrevivência de sua língua (2005), pude ouvir algumas ponderações que advogavam a escrita com “C” e não com “K” em relação ao etnônimo em tela. Quase todos os ciganos presentes, em concordância com Fábio, tinham uma opinião definida sobre  questão, tendo clara preferência pelo uso do “C” e “N”, “Calon”.

Um ancião conhecido do Ceará, o senhor Boiadeiro, explicou que a maioria dos ciganos brasileiros são de cultura oral e, quando muito, “sabem juntar algumas letras e ler umas palavras”. “Muitos”, disse ele, “se apegam as letras mais comuns” e tem muitas dificuldades com “letras pouco usadas no geral”, como é o caso do “K”, “W” e “Y”. Como o “C” é mais usado nas palavras o uso da letra “K” causa confusão. O que o senhor Boaidero disse faz sentido, pois na Língua Portuguesa a letra “K” é utilizada, na categoria de frequência de consoante, em 0,28% das palavras, sendo a terceira letra menos frequente, ficando atrás  apenas de “Y” (0,01%) e “W” (0,01%).

É importante dizer também que a letra “K” na Língua Portuguesa é sobretudo utilizada nas palavras que derivam de estrangeirismos, em siglas ou símbolos de unidades de medida internacionais. Sendo assim, utilizá-la em um etnônimo que representa uma etnia de cultura oral (que na sua maioria vive em contexto urbano) não parece ser uma alternativa dos próprios ciganos Calon, senão uma intervenção exógena, colonial, na escrita que diz respeito aos próprios Calon.   

As línguas românticas (neolatinas, latinas, romance ou romanço), entre as quais o Português, utilizam o “K” apenas em casos muito particulares, o que indica uma potencial problematização para os ciganos Calon de cultura oral que eventualmente possuam algum conhecimento da escrita. A preferência, como diz Fábio Dantas, é pelo “mais acessível, o mais fácil” para o grupo.

Só para fornecer algumas informações a mais, a letra “K” vem do grego Κ ou κ (kappa), adaptado do kap ou kaf das línguas semíticas. Segundo os linguistas, por mais que o som semita de /k/ para esta letra tenha sido mantido na maioria das línguas clássicas e modernas, as palavras provenientes do grego foram assimiladas pelo latim e o “K” foi convertido em “C”.

A letra “K” é a décima primeira letra do alfabeto português e é também a oitava consoante. Em Portugal essa letra foi retirada na revisão ortográfica de 1911 e no Brasil aconteceu o mesmo após a adoção do Formulário Ortográfico de 1943 (substituindo-a por c antes de a, o, ou u e qu antes de e ou i). Atualmente a letra K foi reintegrada no alfabeto português, mas conforme o Acordo Ortográfico tem uma utilização muito limitada.

O Acordo Ortográfico de 1990 restaurou a letra K no alfabeto português sem restaurar o seu uso prévio, que continuará restrito às abreviaturas, às palavras com origem estrangeira e a seus derivados. No Brasil, o AO-1990 entrou em vigor a partir de 1º de janeiro de 2009 e, findo o período de transição de quatro anos, passou a ser a única norma vigente a partir de 1º de janeiro de 2013.

Calon, não Kalon. Calon, não Calom (por conta do som nasalizado ao final; Cf. YOUTUBE, 2020). Calon, não Khalon, pois “KH” só converge dois potenciais problemas sociolinguísticos que dificultam a leitura para as pessoas de etnia Calon que tenham limitações com a leitura e escrita. O que é “K”? E pior: o que é “KH”? Né?

Estamos num momento histórico interessante, onde se vê mais ciganos alfabetizados do que há 20, 30 anos. É de se esperar que os Calon que antes não tinham acesso à leitura comecem agora a conhecer com mais profundidade tudo o que já foi escrito sobre eles. Certamente a busca pelas referências sobre si desencadearão a busca pelo direito de decisão sobre como se referir aos Calon nos textos em língua portuguesa. Por isso esse assunto ainda vai render muito, no entanto, o que já se vê entre ciganos Calon e não ciganos que escrevem é o uso da letra “C”... Calon... 

Calon: história e cultura cigana” (2010) – Francisco Soares Figueiredo (Coronel), líder em Sousa-PB.

“Protocolo de consulta - etnia Calon” - Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos Ciganos. 

“Ciganos Calon no sertão da Paraíba: 1993 e 2000” (2000) – Frans Moonen.

“Ser cigano: a identidade étnica em um acampamento Calon itinerante” (2017) – Igor Shimura.

“Rom, Sinti e Calon: os assim chamados ciganos” (2000) – Frans Moonen.

“Os ciganos Calon de Mambaí: a sobrevivência de sua língua” (2005) – Fábio Dantas de Melo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONVENÇÃO para a grafia dos nomes tribais. Revista de Antropologia. n. 2, v.2, p. 150-152, 1954. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/8378/558.

MELO, Fabio J. Dantas. Os ciganos calon de Mambaí: a sobrevivência de sua língua. Brasília: Thesaurus, 2005.

SHIMURA, Igor. “Ciganos” ou “roma”? apenas e tão somente uma reflexão. Estudos Ciganos Brasileiros. 6 abr. 2020.  Disponível em: https://estudosciganosbrasileiros.blogspot.com/2020/04/ciganos-ou-romaapenas-e-tao-somente-uma.html

YOUTUBE. Som nasal final: palavras terminadas em “m”, “n” ou til. Vila Educativa, 25 nov. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=05TrerC0Z4g



[1] Esta "Convenção" foi assinada por participantes da 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em 1953, de modo a uniformizar a maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em língua portuguesa. Foi publicada na Revista de Antropologia (vol. 2, nº 2, São Paulo, 1954, pp. 150-152) e posteriormente nas primeiras páginas (não numeradas) do volume organizado por Egon Schaden, Leituras de Etnologia Brasileira (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976). 


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