UM ENSAIO SOBRE AS DIMENSÕES DO ATIVISMO CIGANO BRASILEIRO



UM ENSAIO SOBRE AS DIMENSÕES DO ATIVISMO CIGANO BRASILEIRO
Igor Shimura[1]

“A liberdade jamais é dada pelo opressor. Ela tem que ser conquistada pelo oprimido” – Martin Luther King Jr.


             Convivo com ativistas há anos. Por mais que algumas pessoas me considerem um ativista não me vejo assim, no entanto não me incomodo com o termo, já que faço algumas coisas relacionadas ao conceito. Alguns dos meus melhores amigos, gente de casa, são ativistas Calon. Acredito que o ativismo pró-ciganos precisa ser mais discutido, debatido, reconhecido e aderido. Não tenho dúvidas que o ativismo tem um papel importante, benéfico, na causa cigana brasileira, isto é, na luta pelos direitos humanos, promoção da inclusão e reconhecimento.
A calamitosa situação social de muitos ciganos no Brasil pode ser transformada com a ajuda de ativistas, principalmente de ativistas do próprio povo. Mais do que isso, ativistas da própria família, do grupo local, da microcomunidade, para que não sejam “teóricos” que falam “sobre” o sofrimento de ciganos que sequer conhecem e/ou com quem não convivem, mas autóctones que denunciem as violações que eles mesmos sofrem, mostrando as “marcas no próprio corpo”. Como dizia um velho amigo sociólogo, “falar acerca da realidade da rua de dentro de casa não tem tanto peso quanto falar da realidade da rua conhecendo, sentindo, cheirando e se identificando com a rua”. Para destacar ainda mais a questão, o que estou dizendo é que é necessário que o “filho da Maria”, a “filha do Zé”, o “compadre Tonho” e o “chefe Jair”, “gente da gente”, seja empoderada, reconhecida, respeitada e ouvida, pois são essas pessoas que conhecem profundamente, passo a passo, de cor e salteado, do “avesso” e de “trás para frente” todo e qualquer sofrimento da própria carne, da própria alma, da própria família.
Entre escutar “alguém que ouviu dizer o que aconteceu com a vítima” e ouvir “a própria vítima” fico com a segunda opção, a fonte primária, pois evitam-se alguns ruídos de comunicação e/ou distorção de fatos, bem como previne-se contra eventuais oportunistas que poderiam aproveitar a desgraça como trampolim para a própria visibilidade. Por isso, para o exercício de um ativismo de impacto é imprescindível que a voz a ser ouvida seja daqueles que estão num “lugar de fala” autêntico. Quem me conhece sabe que há anos advogo – e estou muitíssimo bem acompanhado nisso – pelo ativismo autóctone dos ciganos brasileiros que sim, poderão contar (eventualmente, porque não?), em algum grau, com a colaboração de amigos e interessados externos.
Jamais esquecerei das declarações do Chefe Jair Alves, um Calon muito respeitado entre os itinerantes da região Sul, quando nos reunimos com um promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, há alguns anos. Ao sentar-se de frente para o promotor o Chefe Jair disse, expressando emoção: “há muitos anos eu gostaria de ter sentado aqui, na frente de um doutor! Ando pelo Paraná há anos e penso em quantas e quantas vezes precisei de uma oportunidade dessas! Ninguém me trouxe aqui para que eu mesmo falasse sobre as necessidades da minha gente. Alguém falou por mim sem minha autorização. Mas que bom que estou aqui agora!”. É isso! Precisamos disso! Esse empoderamento é urgentíssimo.

“Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa” – Martin Luther King Jr.

1. “Ativismo”?

Um ativista nasce, basicamente, de uma profunda indignação com alguma situação ou fato que revela uma estrutura excludente, injusta e opressora. Inconformado, o ativista assume o papel de propagador dessa indignação e aponta os erros dessa estrutura, cobrando os poderes pela efetivação de mudanças que solucionem problemas. Em 2007 tive uma experiência incrível. Recebi uma ligação de Nova York. Era uma pessoa que eu não conhecia, pedindo ajuda para uma pesquisa acadêmica. Ela disse que viria ao Brasil e gostaria de meu apoio para intermediar seu contato com algumas comunidades ciganas de minha cidade, a fim de fazer entrevistas.
Concordei e agendamos as datas. Era ninguém mais ninguém menos do que a conhecida ativista, cigana romena, Alexandra Oprea[2], que na época era uma estudante de mestrado em Relações Internacionais na Columbia University. Atualmente ela é conhecida mundialmente, sendo advogada pelos direitos humanos, tendo trabalhado como diretora educacional da American Romani Alliance[3]”.
Eu e minha esposa a levamos em três comunidades. Uma delas se localizava no centro de Curitiba-PR, formada por ciganos europeus, portugueses, que dias antes haviam sido agredidos por policiais militares, por conta de uma discussão entre primos. Os vizinhos, ciganofóbicos, chamaram a polícia para “conter os ciganos”, pelo que os policiais acabaram agredindo fisicamente, segundo relatos, “toda e qualquer pessoa que identificaram como cigano, inclusive uma cigana gestante, batendo com cassetetes e dando pontapés”. Havíamos visitado acampamentos durante o dia, que foi bastante intenso. Estávamos todos cansados e lá pelas oito e meia da noite Alexandra nos pediu para levá-la aos portugueses, já que eu havia comentado com ela a situação de conflito com os policiais. Fomos.
Chegando lá, quase nove horas da noite, conversamos com alguns jovens portugueses amigos. Não havia nenhum Calon no café da esquina, como de costume naquele horário. O que havia acontecido? Percebemos que havia uma faixa pendurada em dois prédios, de ponta a ponta, cruzando a rua, de forma a ficar bem visível, onde estava escrito algo como: “obrigado polícia militar por nos devolver a paz”. Não demorou nem quinze minutos para que surgisse uma viatura da polícia, que se posicionou na esquina, com o giroflex ligado. De dentro do veículo os policiais nos mandaram a “sair da rua imediatamente e ir para casa”!
Ficamos indignados, pois isso é claramente uma violação constitucional. Os jovens, com medo e já começando a se movimentar em direção cada um para o seu prédio, nos contaram que desde o conflito, há poucos dias, havia sido estabelecido uma “espécie de toque de recolher para os Calon daquela região”. Estávamos conversando em espanhol com Alexandra (o único jeito dela se comunicar com os Calon no Brasil). Ela ficou tão indignada que se dirigiu à viatura tirar satisfação dos policiais! Eu e minha esposa não esperávamos por essa reação, mas fomos com ela.
Alexandra estava tão nervosa que misturava espanhol e inglês, tentando citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mencionando leis e falando sobre racismo e preconceito, alterando a voz a cada palavra. O policial percebeu que era estrangeira e tentou acalmá-la, o que piorou a situação. Cheguei a temer que ela fosse presa – e acredite, ela estava disposta! Naquele momento pensei: “que aula prática! Isso aqui é uma expressão de ativismo, pelo menos uma face dele! Nasce da indignação e essa indignação leva uma pessoa sensível ao combate. Ao perceber que a voz dos ciganos estava sufocada Alexandra se dispôs a ser uma espécie de 'amplificador', protestando contra a injustiça”.

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons” – Martin Luther King Jr.

É importante que se diga que não é meu objetivo aqui tratar do tema com profundidade. É só um ensaio. Em outro momento, talvez, faremos algo melhor. Começo problematizando o termo “ativismo”. Recentemente escrevi um texto onde mencionei as declarações de certo “ativista pró-ciganos”. Ao identificar-se no texto essa pessoa me contatou e gentilmente pediu que alterasse a forma pela qual estava submencionado, pois, segundo disse, “não se vê como um ativista”. Atendi seu pedido prontamente, já que quando falo sobre o direito e o respeito à autoidentificação das pessoas, devo ser o primeiro a dar o exemplo. Fiz a alteração de tal forma que não precisei sequer mencioná-lo. Ele agradeceu.
No dia seguinte fiquei pensativo sobre o ocorrido, refletindo sobre o conceito de ativismo e suas aplicações. Conhecendo o trabalho realizado pela referida pessoa, sei que o termo “ativista” se enquadra perfeitamente, mas por algum motivo ele resiste à associação. Será que ele vê algum demérito no significado da palavra? Será que o termo o compromete politicamente? Será que o ser reconhecido publicamente como ativista gera algum prejuízo em suas relações com a comunidade ou com seus contatos no poder público? Não seria, talvez, o medo de ser associado a outros ativistas? Não sei responder a essas perguntas. Pensemos um pouco sobre o ativismo.
            Não acredito que ser “ativista” seja algum demérito, pelo contrário. Se alguma coisa poderia comprometer essa atuação seria a corrupção. Sabemos que escândalos acontecem em todos os lugares, em todo canto, entre as inúmeras profissões e setores da sociedade. Quantos de nós já não ouviu em algum momento acerca de escândalos envolvendo desvio de recursos financeiros por parte de ativistas que figuravam na luta por diferentes causas, seja do meio ambiente, de grupos específicos, de território etc? Basta uma pesquisa no Google, em processos judiciais e CPIs, para encontrar notícias dessa natureza. No entanto o ativismo, quando feito com seriedade, é uma atividade nobríssima capaz de mudar realidades. Aliás, uma de suas definições é justamente isso, a transformação da realidade por meio de ação prática.
Como batista que sou tenho muito orgulho de ter na história da minha igreja um ativista do calibre de Martin Luther King Jr. (1929-1968), alguém que fez história em sua grande luta contra a segregação racial nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960. Por conta das muitas narrativas políticas que regem o variado universo dos movimentos sociais há quem o critique e desqualifique seu trabalho, mas de forma geral todos reconhecem que ele foi um grande líder.   
Senti uma grande emoção ao visitar o local onde King proferiu seu mais famoso sermão, I have a dream, o Memorial Abraham Lincoln, em Washington DC. Enquanto estava ali, parado em pé, no exato lugar onde King pregou, pensava na importância de agentes que desafiam os sistemas opressores. Para mim o trabalho de King é um exemplo de como deve ser um ativista. Sua luta impactou o mundo da época e nos deixou um legado inspirador. Ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, e dedicou tudo o que tinha e o que pôde à luta pelos direitos civis. Tornou-se o mais proeminente ativista estadunidense da história porque doou-se inteira e apaixonadamente à causa de seu próprio povo, sendo assassinado em 1968. Quem dera tivéssemos mais ativistas como King em nossa história, em nosso tempo e por nossas causas!
Martin Luther King Jr. no Memorial Abraham Lincoln, em 28 de agosto de 1963.
Outro grande vulto da história do ativismo foi o indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), em quem o próprio Martin Luther King se inspirou. Ele lutou pela independência da Índia e fez história! Era advogado, especialista em ética política e como anticolonialista realizou uma grande campanha pela independência, inspirando movimentos pelos direitos civis com o emprego de resistência não violenta. Ele organizou marchas de camponeses, agricultores e trabalhadores urbanos contra o imposto sobre a terra e a discriminação excessiva.
Marcha do Sal, 1930
Gandhi assumiu a liderança do Congresso Nacional Indiano em 1921 e trabalhou arduamente, sob diversos tipos de ataques, visando o autogoverno do país. Seu feito mais famoso foi um desafio aos ingleses através da famosa “Marcha do Sal”, de 400 quilômetros, em 1930, que foi um protesto contra a proibição, imposta pelos britânicos, da extração de sal na Índia colonial. Assim como King, Gandhi pagou um alto preço pelo seu ativismo pró-Índia. Foi preso por muitos anos. Nunca chegou a receber o Prêmio Nobel da Paz, apesar de ter sido indicado cinco vezes entre 1937 e 1948 – no entanto, o erro foi reconhecido pelo Comitê Organizador do Nobel anos depois.
Poderíamos citar aqui outros grandes ativistas de expressão histórica mundial como Nelson Mandela (1918-2013), Hellen Keller (1880-1968) e Rosa Parks (1913-2005), entre outros, figuras que destacaram a importância do ativismo em suas sociedades, diante de grandes causas. Ao ler suas histórias, ao saber de seus feitos e dos efeitos de seus trabalhos não consigo pensar em algum demérito no termo “ativista”, pelo contrário. Dito isso espero que esteja claro que o “ativismo” ao qual estou me referindo aqui é aquele que milita por causas especificamente referentes ao tema do racismo, preconceito e discriminação e as injustiças sociais que isso tudo envolve. Há outros tipos de ativismo, cada qual com o seu valor, mas aqui o foco é outro.  
Por isso penso que precisamos de ativistas negros, ciganos, indígenas etc. Os povos precisam de ativistas! Os mais vulneráveis precisam dos ativistas! Os sistemas de governo, independentemente de suas ideologias, todas, sem exceção – umas mais, outras menos - apresentam “rachaduras” por onde caem os vulneráveis. Por isso é importante, sempre, que hajam "agentes do contraponto", do desafio à mudança, que atuem com integridade para combater desigualdades e injustiças. O que concluir senão “ativista” é um título nobre?   

2. O perfil ativista

Como já disse, não é objetivo me aprofundar no tema, mas acredito que seria importante considerarmos os papéis e características da atividade ativista, considerando especificamente o campo cigano. Identifiquemos, primeiro, os perfis do “ativismo ideal”, pensando em quem é e como pensa um ativista. Antes, porém, gostaria de diferenciar, resumidamente, somente em linhas gerais, os termos “ativista” e “militante”, que em minha opinião, no campo cigano, tem cada um as suas próprias características, ainda que dialoguem e possam conjugar em conceitos, ações e papéis. Não é uma divisão muito fácil e há debates bastante interessantes sobre essa diferenciação.    
Começando pelo ativista, termo sobre o qual me dedicarei mais, é aquele que tem uma ideia, uma causa, e busca adesão de pessoas que o sigam objetivando as mudanças de estruturas envolvidas diretamente à sua causa. Às vezes o termo ativista é descrito como sinônimo de militante, por isso se diz que “um ativista milita” por uma determinada causa (depois farei uma observação quanto a isso).
De qualquer forma o ativista tem um perfil mais, digamos, “prático-intelectual”, com planos e ações traçadas, sempre pensando em novas ideias para dinamizar sua incansável, inglória e constante luta. O ativista em si é o indivíduo, e isso implica numa necessária e firme liderança, conhecimento da causa de suas pautas, de forma a atrair simpatizantes e colaboradores ao seu entorno que irão somar e “militar” coletivamente. Os termos “ativismo” e “ativista” surgiram, como era de se esperar, com conotações políticas, pela imprensa Belga, em 1916, referindo-se ao Movimento Flamingant, cujos participantes eram os flamengos da Bélgica que buscavam uma maior autonomia belgas na região de Flanders.  
O militante, da mesma forma que, como mencionei, pode ser entendido como um sinônimo de ativista, é um pouco diferente: remonta a algo “militar”, com pouca reflexão e muita força de ação. É mais operacional, “à serviço” de uma causa que emana de uma voz de comando, geralmente do ativista. Por isso via de regra o militante segue o ativista e não o contrário.
Para continuar é importante dizer que o ativismo no contexto cigano brasileiro é voltado para o coletivo, não para um indivíduo, isto é, o foco são as comunidades, os grupos, os ranchos e/ou acampamentos, não uma pessoa. Não é concebível, em nossa causa aqui, um ativista “pró-si-mesmo”.
Para concluir esse assunto é bom que se diga que ativismo cigano e pró-cigano, segundo entendo, são sinônimos. Um ativista cigano ou não cigano que milita pelo povo cigano é um "ativista pró-ciganos". 
Dito isso, sigamos pensando sobre a figura do ativista. Considero os dois tipos básicos de ativistas no Brasil assim: 1) ativismo autóctone e o 2) o ativismo de apoio externo. O ativismo autóctone se divide, segundo essa categoria analítica, em dois ramos: o “de origem local” e o “não local”. Quanto ao ativismo de apoio externo podemos pensar em três despontamentos: “acadêmico”, “político” e “social”. 
Para efeitos práticos é importante considerar que é possível que hajam combinações entre os tipos: um “ativista autóctone de origem local” que atua no campo acadêmico ou social, um “não local” que atua no campo social, dentre outros. Um bom exemplo seria o do Calon, professor doutor Jucelho Dantas da Cruz, que dá aulas na Universidade Estadual de Feira de Santa (UEFS) e é uma referência nacional em seu ativismo pró-ciganos.         
Tipos Ativistas
         
Combinações ativistas
O termo autóctone é sinônimo de indígena, ou seja, “alguém do próprio povo”. Por isso, obviamente, o ativista autóctone só pode ser cigano(a). Quando penso num ativista “de origem local” estou falando daquele que pertence e milita especificamente por um determinado grupo, uma determinada família ou comunidade, isto é, “do povo, da família, da comunidade do fulano”. Já o autóctone “não local” é cigano(a), mas de um “grupo outro”, de “outra comunidade”, pertencente à outra rede de parentesco, etnia ou segmento que milita pelos seus (ou não) e por outros, ou seja, o “não local” pode atuar considerando seu próprio grupo e também outros. O “de origem local” tem um foco bem definido, que é o seu próprio grupo, com raras exceções.  
A “ativista de apoio externo”, como o nome já diz, é um agente que não pertence “ao povo”, é “de fora”, não cigano. Pode ser um pesquisador não cigano que milita através de sua produção acadêmica, ou que movimenta e promove debates, discussões e estudos na universidade – e estruturas relacionadas, como escolas, institutos de educação, núcleos de estudos etc.
O “político” pode ser um não cigano que trabalha assessor parlamentar, ministro, prefeito, vereador etc que abraçou a causa cigana e milita por ela. O perfil político está, como é de se concluir, atuando necessariamente na esfera pública política, nas estruturas de poder, abrangendo aí todos os poderes, seja judiciário, executivo e/ou legislativo. Quanto ao ativismo de apoio externo social, o leque é amplo, na medicina, no direito, na assistência social, na psicologia etc. É um ativismo “de fora do povo cigano” em benefício aos ciganos, que ocorre muitas vezes independentemente de sua concordância e/ou conhecimento.

A. O ativista é contextual e temporal, mas está comprometido com uma visão de futuro 

O ativista é uma figura do seu tempo e contexto (ainda que alguns se tornem figuras atemporais, cuja história inspira outros, para as mesmas ou outras causas), mas segue uma visão à frente de seu tempo, de forma que trabalha como se estivesse construindo um “novo mundo”, para que o atual momento, no que concerne ao seu campo, não se repita. Isso sugere que o ativista se ancore em esperança ou otimismo, mesmo que não haja garantias concretas de que sua luta realmente resultará nas mudanças esperadas.
Portanto o ativista se alimenta da possibilidade de um futuro idealizado, se comprometendo com uma realidade ainda imaginada, e que, na verdade, talvez não venha a se concretizar. Visão de futuro pode ser um “sonho”, uma utopia, um ideal. “Dias melhores virão” para o “meu povo”, para “minha causa”, ou “diante dessa e daquela situação”.
O ativista sincero é consumido pela sua visão de futuro. Pensar nisso, trabalhar por isso, doar-se por isso é algo prazeroso e digno dos maiores esforços e sacrifícios pessoais. Por isso o ativista comprometido é produtivo, atuante, zeloso, eficiente e investe na causa pela qual milita, considerando sua disponibilidade de tempo e recursos.      
Tenho para mim que o ativista pró-ciganos não luta para que a “minoria” continue sendo vista como minoria, mas como “igual” na sociedade, acessando os mesmos direitos e benefícios usufruídos por todo e qualquer cidadão (igualdade formal e igualdade material).

“Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” – Aristóteles

B. O ativista tem uma história pessoal que o vincula à sua bandeira
           
Qual é o “lugar de fala”[4] do ativista? De onde parte seu discurso e perspectiva? Está relacionado à sua origem e formação? Ou é algo adquirido, por identificação, simpatia e busca de propósito? Ken Saro-Wiwa (1941-1995) foi um escritor nigeriano, produtor de TV e ativista ambiental. Era membro do povo Ogoni no delta do Níger. Naquela região, a partir da década de 1950, a extração de petróleo causou danos ambientais gravíssimos. Como porta-voz e presidente do Movimento pela sobrevivência do povo Ogoni (MOSOP)Saro-Wiwa liderou uma campanha não-violenta contra a degradação ambiental na área. Ele foi processado por um tribunal militar e enforcado em 1995. Sua execução gerou uma grande indignação internacional de forma que a Nigéria fosse suspensa da Comunidade das Nações por mais de três anos[5].
Saro-Wiwa, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela etc são alguns exemplos de autóctones históricos que tinham uma “ligação nata” com suas próprias causas. Da mesma maneira são os ativistas atuais como a paquistanesa Malala Yousafzai, que milita pelos direitos das mulheres, dentre outros. Seu despertamento ativista se deu por fazerem parte do alvo das violações. Os ataques de seu povo eram sentidos na pele, já que eram/são parte integrante.
No campo cigano, Mio Vacite (1941-2019), Mirian Stanescon e Cláudio Iovanovitchi figuram na lista de ativistas autóctones históricos no Brasil, que partem de experiências e/ou percepções das violações de direitos sofridos pelo próprio povo, apontando as mudanças estruturais necessárias. Há ainda outros como o Wanderlei da Rocha, Maria Jane, Antonio Pereira, Claudio Motta, Alex Soares, Marcelo Almeida etc – “de origem local” e “não local” – que militam por causas do próprio povo, cada um em uma dimensão, conforme trataremos mais adiante.
Além dos autóctones temos aqueles ativistas que se identificam com as causas que não são necessariamente vinculadas à sua própria origem étnica, formação e/ou experiência. Aí vemos, como exemplo, alguns ativistas ambientalistas, pelos animais, contra o consumismo etc. Lembro-me da freira Dorothy Stang, assassinada em 2005, no Pará, que se tornou um símbolo da luta pela reforma agrária planejada e responsável, que visasse minimizar conflitos violentos.
Nicolae Gheorghe - ativista cigano
Alguns casos de ativistas pró-ciganos podem se encaixar nesse perfil, como o grande e famoso Rom, o sociólogo romeno Nicolae Gheorghe (1946-2013), que assumiu sua ciganidade publicamente apenas aos trinta anos de idade. Ao fazer um trabalho de pesquisa de campo e vendo a situação em que seu povo de origem se encontrava se tornou um grande ativista pró-ciganos, startando e elevando o nível da discussão sobre os direitos ciganos ao cenário internacional. Sim, todo ativista, “de fora” e “de dentro”, se baseia em algum fato, experiência ou percepção que o vincula, motiva e o constrói.          

C. O ativista é transdisciplinar e performático

            Penso que “ser ativista” pode ser visto como uma “arte”. Digo isso pensando principalmente na comunicação. É necessário saber se comunicar, se fazer entendido, passar sua mensagem com clareza e objetividade. Com isso não estou dizendo que somente uma boa comunicação “faz” um ativista, mas não tenho dúvidas de que não existe um bom ativista sem uma boa comunicação, verbal ou não. A mensagem precisa ser passada de forma impactante e marcadamente inquietante àqueles que precisam ouvir. Por isso o ativista é, de certa forma, performático. Ele atua sinceramente, se posicionando apaixonadamente, desafiando sistemas corajosamente e exigindo as mudanças necessárias, sempre com argumentos, fatos e estratégias comunicacionais.
            E isso ele faz navegando em diferentes ambientes, setores e poderes. Ora ele está dialogando com um promotor de justiça ou com um prefeito, ora ele está com o mais simples dos anciãos ou uma criança da comunidade, escutando e aprendendo. Da saúde ao direito, da geografia à administração, da enfermagem à antropologia, o ativismo é transdisciplinar, pois busca em tudo e em todos os melhores caminhos, os conhecimentos necessários e as ferramentas eficazes.
            Essa característica faz com que o ativista saiba (ou pelo menos se arrisque) a falar, mesmo que sem muito conhecimento, sobre diferentes temáticas: saúde, educação, cidadania, legislação etc. Dependendo do grau de contato e comunhão que um ativista tem com seu povo ele se é um “faz tudo”: marca consulta, leva ao médico, ensina, intercede, marca reunião, leva o chefe falara com o prefeito, dá palestra no quartel da Polícia Militar, faz compra para uma família desamparada etc.
Muitas vezes essas muitas “funções”, esses muitos papéis exigem que o ativista se inteire, por exemplo, de casos de discriminação e quais leis (no espectro das muitas áreas) se relacionam àquele fato. Para dar outro exemplo, no caso de um convite para palestrar à magistrados, é importante saber se comunicar com o “dialeto profissional” daquele grupo, se fazendo entendido, deixando o mais claro possível o que deseja transmitir, de forma a buscar da melhor maneira o que objetiva.      
Fico encantado quando vejo ativistas falando em reuniões afins sobre a temática cigana. Destaco aqui somente alguns dos nomes mais proeminentes do ativismo do campo cigano no Brasil atual: Elisa Costa (AMSK[6]), Maura Piemonte (CEDRO[7]), Wanderley da Rocha (ANEC[8]), Pastor Alexsandro Castilho (AICROM[9]), Maria Jane Soares (ASCOCIC[10]), que são exemplos de ativistas transdisciplinares, que navegam habilidosamente “entre as linguagens” dos mais diversos setores e campos estruturais de poder, comunicando sua causa com grande impacto e eficiência.        

D. O ativista é um obstáculo aos sistemas opressores e suas injustiças
           
Já disse e repito: a ativismo nasce da inconformidade e se torna um canal de disseminação dessa inconformidade, desafiando, afrontando os interesses de poderosos. A figura do ativista é, por si só, uma afronta aos sistemas econômicos e políticos excludentes. O fato de ser um “produto” da inconformidade, faz com que o ativista seja se coloque, se posicione, contra os erros dos sistemas que regem a vida social que excluem os que “nele não se enquadram”.
Aos seus próprios olhos o ativista (gostando ou não do termo) é um agente de transformação, de resistência e correção da dos equívocos sócio-políticos, mas aos olhos do “sistema” ele é considerado uma figura indesejada e incômoda, que as vezes é alvo de eliminação literal, como temos visto ao longo da história. Uma reportagem de 2019 mostrou que mais de 160 ativistas do meio ambiente foram assassinados em 2018[11].

Pelo menos 164 ativistas ambientais foram mortos no ano passado por defender suas casas, terras e recursos naturais contra projetos de mineração, florestais ou agroindustriais, de acordo com o balanço anual da ONG Global Witness, que aponta a Colômbia como o segundo país mais perigoso. Segundo o relatório, publicado nesta terça-feira, outros "incontáveis" ativistas foram silenciados em todo o mundo por meio de violência, intimidação e uso ou modificação de leis anti-manifestação. O país mais perigoso no ano passado para esses ativistas e líderes indígenas que defendem suas terras foi as Filipinas, com 30 assassinatos, segundo a organização, substituindo o Brasil no topo da lista.

Para citar novamente a freira ativista Dorothy Stang (1931-2005), eis aí alguém que deu a própria vida à uma causa com a qual se identificou. Inconformada com a exploração de terras na Região Amazônica, acompanhava com determinação e solidariedade a vida e luta dos trabalhadores do campo. Ela era defensora da reforma agrária justa e consequente e mantinha diálogo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, na busca de soluções.
Por lutar pelos mais vulneráveis recebeu ameaças de morte. Diante disso declarou: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar[12]. Em 2004 Dorothy recebeu uma premiação da Ordem dos Advogados do Brasil (secção Pará) pela sua luta pelos direitos humanos[13]. Em fevereiro de 2005 foi brutalmente assassinada, com seis tiros, um na cabeça e outros ao redor do corpo, aos 73 anos de idade, numa estrada de difícil acesso, no Estado do Pará.
Ativista Dorothy Stang
            No Brasil não temos mártires dentre os ativistas pró-ciganos conhecidos, mas houveram sim casos entre líderes ciganos anônimos que, mesmo sem muita instrução, lutavam por direitos, dentro de suas limitações e condições. Como uma espécie de “proto-ativistas de origem local” alguns Calon e Rom ao longo dos últimos séculos e/ou décadas lutaram pelo direito de permanecer em um determinado local com suas famílias, ou por acesso à água, ou simplesmente por poder viajar sem serem agredidos. Muitos desses “desconhecidos” e/ou desvalorizados pela história sofreram abusos de autoridade, violência física e até assassinato.
Líder cigano Galvino
O campo etnográfico nos mostra alguns desses casos, sendo um desses, bastante emblemático, para citar um, o do Calon Galvino, que hoje inclusive é reconhecido como uma espécie de “santo anti-opressão-do-estado” por alguns ciganos. Estou concluindo uma pesquisa sobre Galvino, mas resumidamente, dentre as muitas histórias, fala-se que era um chefe bastante carismático e rígido, muito formoso e zeloso pelo seu grupo de origem, em São Paulo. Como itinerante não se conformava com as restrições impostas pelos governos através das forças policiais em relação ao direito de ir e vir. Isso o levava a desafiar a polícia constantemente, até que acabou sendo morto durante um tiroteio. 


O objetivo do ativista, em última análise, não é ser eternamente do contra. Não é esse o foco mais eficiente. “Ser obstáculo” aos sistemas opressores pode ser temporário, dependendo de fatos, articulações, estratégias etc. Não acredito que ciganos serão socialmente incluídos como mostram os nossos “sonhos” nos próximos meses ou anos. É um longo caminho. Por isso digo que uma boa estratégia é buscar o apoio de estruturas que possam somar na luta.
Quanto a isso a campanha contra a ciganofobia (ou romafobia) Dosta[14], promovida pelo Conselho da Europa, trabalhando conscientização, visando aproximar os não ciganos dos cidadãos ciganos, rompendo as barreiras de preconceitos e estereótipos profundamente enraizados.  Fantástico! É muito melhor que os ativistas sejam positivos e articulem esse tipo de campanha junto à órgãos do poder público do que sejam eternos amargos que travam o avanço de melhorias porque não conseguem dialogar. Ser obstáculo à injustiça sempre! Ser ponte de diálogo sempre!

2. DIMENSÕES DO ATIVISMO CIGANO BRASILEIRO

O ativismo cigano brasileiro pode ser dividido basicamente em termos étnicos, políticos e geográficos, sendo que a questão geográfica é determinante para a configuração da atuação relacionada aos outros dois campos, uma vez que define as estruturas sociais e de poder público disponíveis e mais acessíveis para incidência política[15]. Quanto a isso Guimarais[16] diz que “sempre que possível, eles [ciganos] lutam para participar dos processos de tomada de decisão nos níveis local, nacional e internacional”. 
Minha divisão contempla 4 áreas, desde o mais próximo e menor, até o mais distante e maior, do “local e municipal” até o “internacional”. Sendo assim, se a atuação é feita para/com apenas um ou mais grupos locais, “aqui”, então as estruturas sociais e os poderes políticos disponíveis e alvos de interlocução e diálogo são, obviamente, os mais próximos, em âmbito local e municipal, quando muito estadual. Esse é a primeira área.
A segunda, da mesma forma, configura uma atuação mais ampla, que abarca grupos e/ou comunidades para além das próprias fronteiras locais, isto é, comunitárias, étnicas e geográficas, cuja interlocução exige um alcance das estruturas estaduais, às vezes tocando as federais. O mesmo modelo segue quando pensamos em ativismos nacionais (terceiro cenário) ou internacionais (quarto cenário), onde cada qual tem seus canais de interlocução de acordo com a amplitude da geografia onde se encontra seu público.
Como uma forma de organizar e apresentar melhor essa dinâmica criei uma tabela das dimensões do ativismo cigano brasileiro, que chamarei de Tabela At4, a qual demonstra mais explicitamente as 4 áreas de atuação considerando os tipos de ativismo (At). É importante mencionar que este ensaio tem um foco no ativista, mas por vezes o ativista se torna mais institucional, por isso, à medida que da graduação da tabela a visibilidade do ativista se confunde com a da organização jurídica a que pertence ou dirige.
 Começando pelo At0, é o que representa o “aqui”, “meu grupo”, “minha família”, foco do ativismo cujo alcance é prioritariamente municipal, distrital e/ou local, mais familiar e cujas demandas partem do ambiente intragrupo. O At1 é mais amplo e extrapola o próprio espaço, o “aqui”, chegando ao “ali”, ou seja, é um ativismo para além do “meu grupo”, abrangendo outros grupos, geralmente de perfil interétnico, numa esfera estadual.
O At2 e At3 continua a amplitude crescente, sendo um ativismo de nível nacional, menos “familiar”, menos comunitário – e por isso geralmente menos pessoal – e mais atuante principalmente em esferas elevadas da hierarquia política e social. O ativismo At2, via de regra, atua fortemente no poder legislativo e executivo nacional, acionando o poder judiciário em determinadas ocasiões, mantendo forte atenção às realidades locais e estaduais, de onde partem as demandas. O At3, última área, designa um ativismo mais raro, transnacional, que exige uma estrutura suficientemente organizada para a participação de networks globais, seja com estruturas de poder, com outras organizações semelhantes e afins, ou até mesmo em diálogo com outras comunidades ciganas.
É importante ressaltar que a tabela não define necessariamente uma “hierarquia ativista”, mas horizontalmente apresenta cenários de áreas de atuação. Quem conhece o meio ativista cigano brasileiro sabe que há constante diálogo e troca de informações entre blocos geográficos, étnicos e políticos de representatividades. Ativistas do país inteiro dialogam por meios de redes sociais, telefone, e-mails etc, criando uma verdadeira malha de colaboração, especialmente informacional, e de movimentos políticos que definem as disputas por espaço, conforme tratei em outro artigo[17].
Nas tabelas abaixo apresento as áreas, suas respectivas dimensões e grau de intensidade de incidência política, que pode ser classificada por alto, moderado, baixo e baixíssimo. A referida tabela está apresenta uma ideia que pode e deve ser problematizada, especialmente no aspecto da incidência política, já que as relações e articulações políticas podem alterar significativamente as linhas gerais de atuação.
Isso significa que é possível que um At0, por sua influência e capital social/político tenha um grande acesso a instâncias incomuns de sua área de maior concentração. Imaginemos, por exemplo, um ativista autóctone de origem local que atua em seu município, que prioriza o atendimento e luta pelo seu próprio grupo, mas possui contatos estratégicos dentro do Governo Federal ou do Ministério Público Federal. Sua atuação tem um foco, mas o fato de ter contatos estratégicos em outras esferas promove uma expansão de atuação.
   
Tabela At4 – Incidência Política
Área
Dimensão
Grau de intensidade de
incidência política

At0
Local/municipal
Alto
Estadual
Moderado
Federal
Baixo
Internacional
Raríssimo

At1
Local/municipal
Moderado
Estadual
Alto
Federal
Moderado
Internacional
Baixo

At2
Local/municipal
Baixo
Estadual
Moderado
Federal
Alto
Internacional
Moderado

At3
Local/municipal
Baixo
Estadual
Moderado
Federal
Alto
Internacional
Alto

Tabela At4 - Áreas


            Para termos uma visão mais completa sobre a Tabela At4, apresento alguns exemplos, rapidamente, de cada uma das dimensões ativistas pró-ciganos. Eu poderia citar diversos ativistas, mas para tanto precisaríamos praticamente ampliar este ensaio para outro formato, mais extenso, por isso citarei apenas alguns, a título associação entre esta teoria e campo prático.
            As categorias At0 e At1 geralmente são mais anônimas, pois atuam regionalmente, contando com pouca atenção midiática que faça divulgação de seu trabalho. Já as categorias At2 e At3, por atuarem numa dimensão mais ampla, acabam recebendo mais destaques, por mais que muitas vezes alimentem seu discurso com fatos mais locais, intermediados, levantados e difundidos por At0 e At1.
            Começando por At0 menciono o Alexandro Soares, de Quissamã-RJ, que atua fortemente junto à Prefeitura e Câmara de vereadores em seu município, promovendo uma importante aproximação entre seu povo (uma comunidade de cerca de 100 pessoas) e os gestores da cidade. Dentre os seus trabalhos estão os desdobramentos da conexão que faz entre a secretaria de saúde e a comunidade (seminários de prevenções diversas e atendimentos na comunidade), combate ao preconceito, ajuda com alimentos etc.
Alexandro Soares - Evento do Governo Federal, Brasília, maio de 2019.
            Como exemplo de At1 cito dois Calon, Claudio Motta e Antônio Pereira, ambos no Paraná. Como itinerantes, autóctones de origem local, são respectivamente os atuais representantes – titular e suplente – dos povos ciganos junto ao Conselho dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná (CPICT/DEDICH/SEJUF[18]). Ciganos étnicos, nascidos e criados em tendas, sem endereço fixo, conhecem os sofrimentos do próprio povo como ninguém, as dificuldades de acesso à saúde, educação, segurança etc. Conhecem também as dinâmicas internas, os conflitos históricos entre diferentes famílias ciganas, os costumes, as divisões e as culturas. Ambos têm se destacado na luta por direitos com muita dedicação, construindo uma nova história onde quem sofre fala de si mesmo e reivindica com conhecimento de causa.
            Para At2 quero repetir alguns nomes já mencionados anteriormente[19], mas é importante reforçar que uma das características dessa área é o destaque de visibilidade institucional, que evidentemente projeta seu representante, mas fortalece a ideia de pessoas jurídicas que dialogam com o Estado e demais estruturas. Os exemplos já citados foram a Elisa Costa (AMSK), Maura Piemonte (CEDRO), Wanderley da Rocha (ANEC) e Maria Jane Soares (ASCOCIC). Não há muitos outros no At2, com eventuais participações de At1, mas não podemos deixar de citar novamente os nomes referenciais históricos nessa área, como Mio Vacite (União Cigana do Brasil – UCB), Mirian Stanescon (Fundação Santa Sara Kali – FSSK) e Cláudio Iovanovitchi (Associação da Preservação da Cultura Cigana – APRECI), todos exercendo um trabalho focado no sentido da promoção da visibilidade da temática cigana diante dos poderes da República.
            Como exemplo de At3, e como eu disse anteriormente, mais raro, poderia mencionar e discorrer sobre alguns nomes, instituições e grupos que poderiam ser compreendidos na categoria “ativista”, como Gyspy Lore Society (GLS)[20], o Romani Studies Program[21] etc.
Para citar um exemplo mais próximo, uma brasileira, menciono aqui a cigana Romi Aline Miklos, que atualmente vive em Buenos Aires, Argentina. Ela é cantora, compositora, produtora cultural e atualmente faz doutorado em História da Arte (EHESS/USP). Como cigana e pesquisadora que tem sido convidada por algumas instituições, como a Universidade de Harvard, Estados Unidos, e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil, para ministrar conferências e workshops sobre os povos ciganos na América Latina.
Aline Miklos - ativista Romi
Como reconhecimento de seu trabalho, também foi selecionada como bolsista para o curso de capacitação sobre direitos e minorias oferecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2019, em Genebra, Suíça. Atualmente é diretora e criadora do projeto de música Kalo Chiriklo – música e ciganos na América Latina, cujo objetivo é promover e capacitar artistas ciganos na América Latina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma expressão popular diz “muito cacique para pouco índio”. Talvez o número de ativistas ciganos no Brasil ainda seja pequeno, mas mais pequenos, ainda, são os espaços estratégicos. Diante desse quadro as disputas (conforme tratei em outro texto) tornam-se mais acirradas entre ativistas, de maneira que o foco pode se perder.
Lembro-me de um texto bíblico em que João Batista, ao ver Jesus Cristo, disse: “é necessário que ele cresça e que eu diminua” (João 3.30). Longe de mim fazer uma interpretação adaptativa desse texto à realidade ativista, mas simplesmente tomando seu sentido, entendo que o papel do ativista deve ser “diminuir”, em visibilidade, à medida que faz e trabalha arduamente para que a causa pela qual milita e se dedica “cresça”, ou seja, a causa está acima do ativista, está acima do representante.
Pensando assim, é fundamental que o ativista apresente demandas concretas, de algo real, principalmente - nos dias atuais -  que possa ser documentado, através de vídeos, de fotos e de testemunhos. Essa intermediação da realidade, da "rua", com o ambiente de poder da "casa" estabelece demandas não imaginárias. É a concretude do ativismo. Para finalizar, como diz o hino oficial Cigano[23]: “Akre vriama, usti Rom akana!” (“Agora é a hora. Levantem-se os Ciganos, agora”).





[1] Igor Shimura é o atual presidente da Associação Social de Apoio Integral aos Ciganos (ASAIC). Foi diretor do Departamento de Igualdade Racial (DEPIR/SNPIR/MMFDH). É mestre em Ciências Sociais (UEM), especialista em Antropologia Cultural (PUCPR), graduado em Teologia (FTSA). É filiado ao Gypsy Lore Society (GLS) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

[4] Cf. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do sabei. 7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4070132/mod_resource/content/1/FOUCAULT.pdf Acesso em 16 abr. 2020 e ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8 ed. Campinas: Pontes, 2009. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/signum/article/view/13004 Acesso em 16 abr. 2020.

[7] Centro e Estudos e Discussões Romani. Maura Ney Piemonte é a atual representante dos povos ciganos no Conselho Nacional dos Povos Tradicionais (CNPCT). Cf. https://fianbrasil.org.br/tiraram-da-gente-o-unico-espaco-que-tinhamos-voz-que-era-o-cnpct-e-se-isso-acabar-nao-vai-restar-nada-pra-gente/
[8] Associação Nacional das Etnias Ciganas. Cf. http://anecnacional.blogspot.com/
[9] Associação Internacional da Cultura Romani.
[10] Associação Comunitária dos Ciganos de Condado-PB.
[15]Incidência política” pode ser conceituada como “criar pressão política apresentando demandas dos ciganos, ocupando espaços de articulação e motivando políticas públicas.
[16] Cf. p. 90. GUIMARAIS, Marcos Toyansk Silva. O associativismo transnacional cigano:
identidades, diásporas e territórios. 2012. 231 f. (Tese de Doutorado em
Geografia). Universidade de São Paulo, 2012.
[19] Cf. C. O ativista é transdisciplinar e performático.
[23] Letra foi composta pelo cigano Rom de origem sérvia Zarko Jovanovic, que então a colocou em uma melodia tradicional no ano de 1949.

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