"Dia Nacional do Cigano", laicidade e imagens folclorizadas da ciganidade brasileira

“Dia Nacional do Cigano”, laicidade e imagens folclorizadas da ciganidade brasileira
 
Igor Shimura[1]




Introdução

Devo começar este ensaio reconhecendo o valor do dia 24 de maio, data que promove uma significativa e inédita visibilidade aos povos ciganos no Brasil. Essa homenagem, partindo do poder público, aponta para os direitos fundamentais, inclusão social, valorização e o reconhecimento de um grupo étnico historicamente marginalizado pela sociedade. Não há dúvidas de que a criação de uma data para comemorar o valor, as culturas e a participação cigana na história nacional é uma forma de minimizar e reparar algumas consequências do racismo e da ciganofobia praticada pelo Estado e sociedade ao longo dos séculos.
O decreto 10841[2], assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, “integrou uma série de medidas destinadas especificamente a essa minoria étnica”[3]. Esse reconhecimento público, como gesto positivo, gerou diversas iniciativas ao longo dos anos seguintes, sob a premissa de que as demandas específicas dos ciganos não são, historicamente, de fato contempladas pelas políticas públicas existentes. Era necessário avançar e atender essa pauta, considerando os recortes étnico e social que definiam as comunidades ciganas. Esse é um primeiro olhar que podemos e devemos ter em relação ao 24 de maio.
Por outro lado, se faz necessário observar a referida data sob outros ângulos, considerando efeitos simbólicos e culturais no cotidiano das comunidades ciganas brasileiras, seja em relação a sua identificação com as representações que se fazem da data pelo poder público, seja pelos seus significados, associações e interesses envolvidos. Logo depois do referido decreto ciganos de diferentes grupos, segmentos e lugares debatiam e discutiam sobre a escolha da data, sinalizando a pouca participação da sociedade civil no processo, já que a homenagem seria para uma população significativa, talvez entre 500 mil e 1 milhão de pessoas.
Tive a honra de ser um dos convidados para participar da primeira solenidade relativa à essa data, em Brasília-DF, no ano de 2007. Lembro-me que, durante os dias que antecediam o evento – os convidados participaram de uma capacitação promovida pelo Ministério da Cultura – muitos ativistas debatiam, de forma crítica, sobre os possíveis desdobramentos da relação que o Estado estaria promovendo ao associar o “Dia de Santa Sara Kali” com o “Dia Nacional do Cigano”. Nas conversas de corredor, entre uma programação e outra, falava-se sobre laicidade constitucional, a não identificação geral de ciganos brasileiros com a tal santa e o aparente desprezo dos legisladores em relação ao dia 8 de abril, Dia Internacional dos Ciganos. 
Essas conversas eram longas e demonstravam insatisfação dos ativistas, talvez porque se sentiam excluídos do processo e gostariam de terem sido ouvidos. De qualquer forma o fato de haver, agora, um “dia do cigano” para se comemorar, ofuscava em certa medida a frustração da exclusão que todos sofreram.  
Com essa pequena introdução passo a apresentar mais detalhadamente uma problematização em torno do Dia Nacional do Cigano no Brasil.
 
I
Cigano e religião
 
Certa vez um líder Calon chamado Valdir Apolinário me disse: “cigano não é, nunca foi e nunca será religião!”. Tal afirmação expressa a negação da associação “cigano-religião”. Mas, quem ainda não sabe disso? Muitas pessoas ainda associam ciganidade, o “ser cigano”, com religiosidade. Não que ciganos não possuam religião, pelo contrário, mas o “ser cigano” não é o mesmo que pertencer à uma religião, como se a “identidade cigana” fosse religiosa em si. Por outro lado, na Europa do século XV havia quem dissesse que “os ciganos eram pessoas sem religião”, argumento que servia para justificar a perseguição contra “ciganos hereges” e “pagãos”[4].
Fato é que “ciganidade” – entendido aqui como “identidade cigana” – e religião nunca serão “uma coisa só”, ainda que alguns digam o contrário. Também é importante dizer que não existe uma religião “de preferência” dos ciganos, como pensam alguns. Afirmar que “os ciganos”, generalizadamente, possuem uma padroeira, uma crença ou uma única igreja é um equívoco descomunal e só revela desconhecimento e ignorância sobre esse povo. Outro equívoco é afirmar que existe uma suposta “cultura cigana pura, hegemônica ou correta” que, se preservada, os vincularia à determinada religiosidade.
Quanto a isso já ouvi muitos afirmarem que “a cultura verdadeira e original dos ciganos” é “de matriz islâmica”, “de matriz Sikhi”, “originalmente judaica”, “budista” etc. Essas falas geralmente são usadas como argumento para apontar um suposto processo gradativo de “desaparecimento” da “verdadeira identidade cigana”, que estaria "se perdendo" ao ter contato com múltiplas religiões. Esse pensamento ignora tanto a história dos povos ciganos, sua trajetória geográfica, seus contatos interculturais ao longo de cerca de dez séculos e sua incrível resiliência e habilidade de adaptação como também sua incrível pluralidade religiosa. 
Suas andanças em meio à diferentes povos e nações lhes proporcionou o desenvolvimento de “um ethos sincrético, multicultural e translocal com alta performance adaptativa e reinventiva, o que viabiliza a preservação da identidade cigana apesar dos mais diversos contatos interétnicos”[5]. Aos adeptos da visão do “purismo cultural cigano”, “desde sempre em risco”, ciganos ou não, é recomendável uma pesquisa sobre dinamismo cultural[6]. Não se pode “museificar” as culturas ciganas, que são dinâmicas e se modificam constantemente diante dos contatos interétnicos.
Diz-se que um dos “princípios coletivos”, às vezes essencializado, muito valorizado por ciganos é a “liberdade”. Por isso alguns afirmam que “sua religião é a liberdade”. Talvez seja por conta dessa liberdade é que podemos ver ciganos de diferentes credos e religiões, o que deve ser respeitado: islâmicos, umbandistas, evangélicos, católicos, espíritas, maçons, testemunhas de Jeová etc. 
Se consideramos o contexto internacional e pensarmos na Espanha, por exemplo, é muito comum que coletivos gitanos sejam reconhecidos como pentecostais, já que a Iglesia Filadélfia, uma igreja evangélica étnica bastante popular, agrega cerca de 200 mil participantes – todos de etnia cigana – a ponto de haver um ditado entre os espanhóis que diz, “si eres gitano, entonces eres pentecostal[7]. Algo semelhante acontece entre os ciganos albaneses e turcos, cuja maioria é islâmica. No Brasil a grande maioria é de confissão cristã, majoritariamente católica apostólica romana, no entanto há um crescente número de evangélicos, especialmente de linha neopentecostal, refletindo o que já acontece na sociedade nacional. 
Diante disso é insustentável pensar uma ciganidade indissociada de algum pertencimento religioso. Sendo assim o 24 de maio como data comemorativa parece ter gerado efeitos contraditórios: por um lado a necessária e importante valorização e reconhecimento dos povos ciganos, por outro, uma data enviesada, estrategicamente pensada para dar destaque à apenas um determinado culto ou crença religiosa específica, a saber, a veneração de Santa Sara Kali. Quem disse que o Estado não coloniza, não é mesmo? 
Sem uma ampla participação de lideranças interessadas, com audiências públicas e definição conjunta, a data foi criada deslocada da laicidade constitucional, impondo à associação da ciganidade a crença em uma santa estrangeira, pouco conhecida (até então) pelos ciganos brasileiros. Para muitos ciganos isso pareceu uma imposição estatal e, por mais que se tratasse de uma política inédita nos últimos quinhentos anos, a data não fez nenhum sentido para a maioria dos ciganos no Brasil.
Com isso muitos se questionaram se o Estado não estaria, desavisadamente, “catequizando” os ciganos, ditando que Santa Sara Kali seria, por força de lei, “a padroeira de todos os ciganos brasileiros”. Insistentes e inquietantes perguntas foram feitas: de onde os gestores públicos tiraram essa informação equivocada? Quantos ciganos brasileiros concordam com isso? Ninguém questionou se a fonte disso não estaria conduzindo a estrutura governamental à um equívoco? São perguntas que que ecoam desde os dias da solenidade no Salão Negro do Palácio da Justiça, em 2007.
Essas são algumas críticas que ouvi em relação a isso: “Em minha opinião a Santa Sara Kali é religião e o Dia Nacional do Cigano é política” (Elez Bislim, Cigano Rom, muçulmano, São Paulo-SP). “Essa Santa nunca foi uma referência de divindade para mim e minha família”(Maicon Apolinário – Cigano Calon, cristão, Santa Fé do Sul-SP). “Não podemos dividir o Dia do Cigano com uma data religiosa” (Erli Soares, Cigano Calon, evangélico, Trindade-GO).
 
II
Santa Sara Kali e as muitas lendas
 
Há muitas lendas acerca de Santa Sara Kali. Algumas delas são inspiradoras, demonstrando um lado social, acolhedor e espiritual, retratando-a como uma pessoa hospitaleira, cuidadora, receptiva e devota, possíveis razões pelas quais se tornou ícone e objeto de adoração. Uma das lendas conta que antes do ano cinquenta depois de Cristo, uma embarcação tripulada por cristãos perseguidos, oriunda da Palestina, teria cruzado mares, sem remos nem provisões, em direção a Europa. Conta-se que a embarcação levava um grupo de personagens bíblicos, a saber, Maria Jacobina, tia de Jesus Cristo – irmã de Maria, Maria Madalena, Marta, Lázaro, Maria Salomé – mãe dos apóstolos Tiago e João, Maximino e Sara, uma negra, serva das santas mulheres a bordo.
Segundo a lenda, diante dos imensos riscos que corriam sem nenhum instrumento de navegação e alimentos, Sara teria rezado e feito uma promessa de que se chegassem a salvo em algum lugar passaria o resto de seus dias com a cabeça coberta por um lenço. A viagem, milagrosa, terminou em uma pequena ilha a dois quilômetros a leste do estuário do Petit-Rhône situada em águas do Mediterrâneo. Na ilha está construída a cidade de Saintes Maries de la Mer, erguida na foz do Rio Ródano, região de Provença, sul da França. Uma das lendas diz que os tripulantes foram recepcionados por um grupo de ciganos.  
Na teoria do autor Dan Brown, em sua obra O Código da Vinci (2003) baseando-se na obra Holy Blood, Holly Grail (1982), Sara seria a filha de Jesus Cristo com Maria Madalena. Uma lenda diz que Sara é considerada uma das primeiras convertidas ao cristianismo e teria dedicado sua vida a serviço de suas santas senhoras. Outras versões da lenda apontam Sara como uma das habitantes da região da Camarga quando a embarcação chegou com as santas mulheres, de forma que Sara as recebeu oferecendo-lhes ajuda incondicional.  
Ouve-se também que Sara foi serva e parteira auxiliar de Maria, e que Jesus Cristo, por esta tê-lo trazido ao mundo, teria alta estima por ela. Outras lendas narram Sara como sacerdotisa do deus Mitra ou mesmo como uma divindade de origem celta ligada à Terra; outras narram que ela foi uma rainha egípcia ou africana, o que explicaria pele negra. 
Como objeto de culto a Igreja Apostólica Romana reconhece sua canonização, que teria ocorrido em 1712 a.D., mas omite seu culto, conforme se lê no site da Arquidiocese de São Paulo, “por falta de dados históricos seguros. Há muita lenda sobre Santa Sara Kali”[8]. Diante disso a grande questão, sem resposta concreta e segura, é se de fato Santa Sara teria realmente aderência religiosa coletiva, geral, entre “os ciganos”, ou seria algo pontual, local, numa pequena região francesa. Seria correto afirmar que a Santa Sara Kali é a padroeira global, geral, “dos ciganos”? Quais e quantos ciganos concordariam com isso?
Como santa regional ou, na linguagem católica, “de segunda grandeza”, sua imagem, coberta de lenços, fica na cripta da Igreja de Saint Michel, onde estariam depositados seus ossos, que teriam sido encontrados por um rei em 1448. Uma grande festa em sua homenagem é celebrada todos os anos, nos dias 24 e 25 de maio, reunindo ciganos e não ciganos de várias partes do mundo, principalmente da Europa.
Historicamente o culto a Santa Sara Kali pode ser interpretado como uma atualização dos cultos mais antigos dirigidos às “virgens negras”, que seriam santidades femininas de pele negra veneradas por fiéis católicos, fenômeno comum na Espanha e França. Sara é relacionada a atributos de proteção da maternidade e, como rito, muitas mulheres que não podem engravidar, ou as que pedem a ela por um bom parto, depositam lenços aos seus pés. 
Segundo Schepis (1999), que acredita que Santa Sara Kali realmente é uma “santa cigana” e global,
 
não se conhece a razão exata que levou o povo cigano a eleger a Santa Sara como a sua padroeira. O certo é que ela é a mais venerada santa para os ciganos, a quem dirigem suas súplicas e apelos, além de oferecerem festas e ritos de agradecimento pelas graças recebidas.    
 
III
Ciganos no Brasil: lendas, estereótipos e suas implicações políticas e sociais
 
 
A associação “dos ciganos” com a Santa Sara Kali, tal como se ela realmente fosse a “padroeira de todos”, tem implicações no imaginário social não cigano. Essa relação pode produzir uma lógica equivocada, situando o aspecto lendário da santa etnicizada em seus supostos adeptos étnicos ciganos. Alguém pode concluir erradamente que “se a santa cigana está envolta em lendas de origem e identidade, seus adeptos também estão”. Você já ouviu dizer que “ciganos são misteriosos?”. Isso nos remete ao estereótipo do “cigano-religião”, já mencionado. 
Se é uma religião então supõe-se que qualquer indivíduo, em tese, poderia “se converter” à ciganidade. E aí a pergunta é: uma vez “convertido à cigano” essa pessoa poderia usufruir de benefícios sociais criados especificamente para ciganos? Se assim fosse talvez bastasse a aderência ao culto-veneração-devoção explícita a Santa Sara Kali, assumindo alguns elementos diacríticos, tais como determinadas indumentárias e comportamentos, o cumprimento ou participação de alguns ritos e pronto, teríamos “ciganos artificiais”, apenas “de coração”. 
Essa imagem "religiogizada" de ciganos tende a folclorizar e estereotipar suas culturas, distraindo observadores e/ou gestores públicos para aspectos distantes da sofrida vida de inúmeras comunidades e indivíduos. Se o olhar para o cigano estiver associado enfaticamente à uma determinada crença é possível que a sensibilidade e percepção do todo se perca, inclusive colocando em risco a ideia de sua liberdade de crença e o dinamismo de um povo resiliente, bem como de sua capacidade de interação social.
Um exemplo disso é o texto substitutivo não oficial, exposto publicamente em 2019, do PLS 248/2015, que cria o Estatuto do Cigano[9]. Segundo diz, ensaia inserir um artigo folclorizado e que demonstra o desconhecimento do contexto plural da religiosidade dos ciganos brasileiros. O texto afirma, no Título IV, nas Disposições Finais, no art. 44: “Fica instituído o dia 24 de maio, dia de Santa Sara Kali, Padroeira Universal do Povo Cigano, como Dia Nacional do Povo Cigano”. Tal equívoco, sob força de lei, poderia dividir ainda mais os ciganos brasileiros, gerando descontentamentos e provavelmente “etilizando” os adeptos da santa, afinal seriam os únicos confessantes religiosos que seriam “reconhecidos pelo Estado”. 
 
IV
Os ciganos e suas opções religiosas no Brasil
 
No contexto brasileiro a maioria dos ciganos brasileiros confessa o cristianismo, principalmente o catolicismo apostólico romano, no entanto sabemos que há indivíduos e coletivos ligados à maçonaria, ao espiritismo, à umbanda, candomblé, pentecostalismo etc. Para repetir mais uma vez: não existe uma religião de preferência de “todos os ciganos”, senão que cada indivíduo e comunidade, cada qual em um contexto, tem sua particularidade e se associa à diferentes credos e cultos, sem necessariamente “perder” a identidade étnica, ou seja, o senso de pertencimento de “ser cigano”.
Nesse sentido, uma vez que uma religião externa é adotada por ciganos, ela se torna não um elemento “desagregador”, mas constituinte, ou seja, adorna a ciganidade, adaptando-a à um determinado meio social onde ocorrem relações estratégicas de sobrevivência e perpetuação. Esse processo permite ao cigano se reelaborar enquanto identidade étnica, o que muitas vezes envolve a “ciganização” de elementos externos. Isso só é possível graças a sua tendência sincrética. Quanto a isso, Pereira (2009) afirma que ciganos
 
são devotos de santo Antonio, Aparecida do Norte, Nossa Senhora das Graças, padroeira dos ciganos do Catumbi, são Jorge, são Francisco de Assis, Santana, são Nicolau, Sara, a Kali, são Sebastião, são Dimas, Nossa senhora de Nazaré, Virgem de Loretto, entre outros [...] Essa lista de santos e santas é interminável e varia de acordo com o país em que os ciganos habitam.  
 
Isso nos remente à ideia de que, ao serem “adotados” no seio de comunidades ciganas, deuses, santos e outros tipos de entidades, são ciganizados, recebendo “novas roupagens”, com narrativas e contos ligados à experiência étnica, relacionando-os a mitos de origem e mecanismos de proteção. Nossa Senhora Aparecida, uma santa brasileira, é um exemplo, pois segundo alguns mitos Calon “se tornou” uma “santa cigana”. Sobre isso Senna (2005, pp. 170,171) registra: “os ciganos são abençoados porque Nossa Senhora deu mama aos seus filhos e, por esse motivo, ganharam o direito de xingar, já que a salvação está assegurada nas mãos de Deus, faça o que fizerem, menos o crime”. Outro relato diz:
 
“Antigamente, quando os ciganos, acompanhados por Nossa Senhora, andavam juntos pelos campos, de fazenda em fazenda iam pedindo rancho (solicitando alimentos). Mas, como nem sempre conseguiam, a virgem pedia às ciganas que colhessem, nas roças, batatas, espigas de milho e melancias (plantas comuns da região – pode ser uma adequação mítica) para alimentarem as crianças”.
 
Podemos concluir que essa dinâmica religiosa – que Senna chama de adequação mítica – seria uma espécie de mecanismo de autopreservação identitária, a despeito dos mais diversos contextos em que o povo possa se encontrar, agregando a si as mais diversas vertentes religiosas, que são modeladas e adequadas pelo seu sistema religioso sincrético.
Ao visitar a comunidade de Sousa-PB podemos encontrar ciganos Testemunhas de Jeová. Sendo uma comunidade imensa – com cerca de 1800 pessoas, menor apenas do que a de Trindade-GO – e majoritariamente católica, é interessante perceber a liberdade religiosa ali vivenciada. Da mesma forma em Trindade-GO, o Calon C.S.[10], convertido ao Islamismo, atua praticamente como um missionário muçulmano, divulgando sua fé aos familiares e comunidade.
Um dos movimentos que mais cresce no Brasil é o protestantismo evangélico. Em Campinas-SP está sediada a Igreja Evangélica Romani, no bairro Jardim Olinda. Essa é a igreja cigana mais antiga do país e chegou aqui na década de 1980, através de um pastor cigano italiano chamado Lúlu. Atualmente a Igreja Romani brasileira está inserida numa network transnacional, conectada à movimentos evangélicos ciganos em diversos países.
Entre os Calon brasileiros também há um crescente número de evangélicos, sendo que maioria ou frequenta informalmente ou se filia a igrejas não ciganas, “diluindo-se” em meio aos não ciganos. Uma das poucas igrejas Calon conhecidas no Brasil está no município de Itapevi-SP, fundada pela própria comunidade Calon local, preservando elementos culturais locais, mas com forte inclinação pentecostal e forte atuação social, realizando projetos em outras comunidades.
Poderíamos mencionar com mais detalhes diversos segmentos religiosos, bem como iniciativas externas influenciadoras, como é o caso da Pastoral dos Nômades da CNBB (Convenção Nacional de Bispos do Brasil), forte divulgadora do beato Calon espanhol Zeferino Gimenez, “o primeiro cigano elevado aos altares”[11]. Independentemente do que se diga, ciganos são plurais, inclusive no aspecto religioso. Cada qual tem a sua crença. Não existem padroeiros(as) reconhecidos por todos, nem sequer por uma maioria.   
 
V
“Caricaturas ciganas”
 
As "caricaturas ciganas" certamente se refletem nas relações entre ciganos e não ciganos. Em 2018, por exemplo, ao mediar um conflito entre um acampamento cigano itinerante e seus vizinhos, fiquei muito irritado com o que ouvi de uma moradora próxima das tendas. Ela insistia que a comunidade deveria “ir embora”, “deixar a cidade” e para tanto havia procurado o Ministério Público, pedindo ajuda. Um grande medo de ciganos a levava a fantasiar coisas. O estereótipo do “cigano violento” se misturava com a do “cigano pirata”, de forma que certa vez acusou a comunidade de “ter contratado um homem para observar sua família na frente de sua casa, vez ou outra”.
Ela afirmava que se tratava “de um cigano negro, que usava lenço na cabeça e brincos largos, tipo um pirata”. Eu não podia acreditar no que ouvia. Era evidente que estava inventando tudo aquilo, talvez tentando encontrar favor junto ao promotor, se utilizando de imagens “ciganolescas” que eventualmente poderiam ser ameaçadoras e repulsivas para ele. Ela descrevia exatamente os estereótipos googlenianos, de ciganos fantasiados, em certa medida infantilizados, totalmente irreais. Só faltou dizer que o tal homem usava tapa-olho e dançava flamenco com uma rosa na boca em frente à sua casa! Era ridículo!
Essas imagens estigmatizantes, essencializadas, de ciganos meio “espanholados”, como se fossem o “zorro”, tem sido propagadas através de muitos meios e desfiguram a luta de ativistas ciganos e não ciganos que trabalham para chamar a atenção do poder público para as mazelas sociais que os ciganos vulneráveis vivenciam. A ideia do “festeiro compulsivo” pode até encontrar eco em alguns contextos mais abastados, mas jamais deveria ser uma imagem generalizada, que esconde a realidade social da maioria marginalizada.
Há muitos estigmas envolvendo ciganos - trapaceiro, velhaco, barulhento, mulherengo, dançarino nato, ladrão de criancinhas etc - mas é curioso como algumas dessas imagens, como a do “dançarino performático” ou a do “mulherão sensual”, por mais que possam parecer inofensivas, podem colocar “os ciganos” numa posição de "tipo de gente exótica", tal como se fossem “seres deslocados”, "desviantes" do todo da sociedade, destacando-os como “os esquisitos”, os “divertidores sociais”, dignos de uma exposição para curiosos. 
A questão é: e quanto ao exercício da cidadania plena dessas pessoas? “Ciganos”, nesses termos, “seriam humanos” ou meras representações simultaneamente recreativas e/ou ameaçadoras? Outro aspecto está relacionado à questão do gênero. A figura da mulher sempre está em destaque nesses casos. A ideia de mulheres ciganas com parte dos seios fartos à mostra, olhos grandes e sensuais, “ventre tanquinho” de fora, magras e com curvas acentuadas objetifica a figura da mulher cigana e dificulta as lutas do feminismo cigano. Lado oposto da mesma moeda é a ideia da cigana quiromante – ofício real e comum no Brasil – desdentada, cega de um olho e suja que, demonizada, também distancia os coletivos Calon e Rom de seus direitos. Essas imagens são comuns em literaturas, artes e mídia e a partir disso são ventiladas e vendidas como perfil padrão de ciganidade.  
Teria a cigana Esmeralda, do clássico romance O Corcunda de Notre-Dame (1831), influenciado essas imagens de alguma forma? Porque há gente que associa a filha do sultão do conto Aladdin à uma mulher cigana? É o estereótipo! Alguma relação com as caricaturas ciganolescas insufladas pelo Dia Nacional da Santa Sara Kali, digo, Dia Nacional “do Cigano”?
         
Conclusão
 
Ao homenagear os moradores da maior comunidade cigana da Europa, Lunik IX, em Kosice, Eslováquia, a cantora galesa Cate Le Bon[12] apresentou em seu clip imagens de pessoas comuns, sem sinais diacríticos visíveis, que os distinguisse de outras pessoas. Tratava-se de ciganos Rom. Em sua denúncia contra o poder público que ignora as condições das moradias daquela população Le Bon apontava para a integração de um segmento urbano, que convive e coexiste com a sociedade majoritária. Sua escolha não foi pelo exotismo baseado em caricaturas espalhafatosas e “espiritualizadas”. Ciganos, simplesmente ciganos, ou seja, pessoas com identidades, com senso de pertencimento étnico e uma busca pelo direito de serem o que são, em busca de empregos, segurança, acessos a direitos etc. Não seria esse um bom caminho para uma perspectiva brasileira?
Outro ponto está relacionado à laicidade do Estado. A liberdade religiosa viabiliza que ciganos se decidam pelas suas crenças e religiões. Protegidos pela Constituição Federal ciganos se convertem e propagam sua fé, independentemente de qual seja, no entanto, o Estado não deveria se prestar ao papel de “missionário” da Santa Sara Kali, associando o seu culto a “todos os ciganos”. Laicidade, como sabemos, significa a desagregação da religião e seus valores sobre os atos governamentais.
Em uma democracia, a pluralidade de crenças e valores é incalculável, justamente por pousar sobre o princípio da liberdade. O Estado deve agir com o máximo de neutralidade e equidade possível com relação as mais diversas pautas, por isso, a laicidade é um princípio crucial para a manutenção da democracia e os direitos individuais e coletivos. Se não formos surpreendidos por alguma ação do Estado que cancele o Decreto de 2006 e crie outro para 8 de abril a pergunta continuará sendo: onde está a laicidade do/no Dia Nacional do Cigano, uma vez que está vinculado ao Dia de Santa Sara Kali?
É evidente que este assunto demanda uma pesquisa mais elaborada e profunda sobre o tema. Como ensaio acerca da imagem cigana e sua relação com o Dia Nacional do cigano apenas tentamos apresentar uma reflexão. Não se trata de um assunto de fácil manejo, pois envolve uma série de questões, sobretudo antropológicas e políticas. É um assunto urgente, como quase tudo relacionado a ciganos no Brasil. Fato é que os reflexos de uma imagem folclorizada, “ciganolesca” e caricata de ciganos se reflete no dia a dia das comunidades.
Como já dissemos, qualquer religião, qualquer uma, combina com a ciganidade. Os elementos estranhos são “ciganizados” e os polos se ajeitam, se adequam. O que não combina é a unilateralidade legislativa em relação à um povo plural!
 
Referências bibliográficas
 
DELGADO, Manoela Cantón; MONTIEL, Cristina Marcos; BAENA, Salvador Medina; CABEZAS, Ignacio Mena. Gitanos pentecostales: una mirada antropológica a la iglesia filadelfia em Andalucía. Sevilla: Signatura Demos, 2004.
 
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 24 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
 
PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
 
SCHEPIS, Rosaly Mariza. Ciganos: os filhos mágicos da natureza. 4 ed. São Paulo: Madras Editora Ltda, 1999.
 
SENNA, Ronaldo. A seda esgarçada: configuração sociocultural dos ciganos de Utinga. Feira de Santana: UEFS, 2005.
 
SHIMURA, Igor. ARAÚJO, Marivânia Conceição. Ciganos no Brasil: contatos interculturais e reelaboração identitária. In: GOLDFARB, Maria Patrícia; TOYANSK, Marcos; CHIANCA, Luciana de Oliveira (Org.). Ciganos: olhares e perspectivas. João Pessoa: Editora UFPB, 2019. cap. 5. p.99-114.
 
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos ciganos no Brasil. E-texto n. 2. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2000.
 
VEIGA, Felipe Berocan; MELLO, Marco Antonio da Silva. O “dia nacional do cigano” no Brasil: espaços simbólicos, estereótipos e conflitos em torno de um novo rito de calendário oficial. In: GOLDFARB, Maria Patrícia; TOYANSK, Marcos; CHIANCA, Luciana de Oliveira (Org.). Ciganos: olhares e perspectivas. João Pessoa: Editora UFPB, 2019. cap. 8. p.149-192.
 
 
 

[1] Doutorando em antropologia (UFPR), mestre em ciências sociais (UEM), especialista em antropologia cultural (PUCPR), graduado em teologia (FTSA). Presidente do Instituto PluriBrasil, entidade que ocupa cadeira no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e no Conselho de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais (CPICT/PR). Foi conselheiro notório saber no CNPIR (gestão 2018-2020) e coordenou o GT-Cigano, que construiu propostas para a elaboração do Plano Nacional de Políticas dos Direitos Ciganos. Filiado ao Gypsy Lore Society e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). 
[2] Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/dnn/Dnn10841.htm
[3] VEIGA, MELLO In: GOLDFARB, TOYANSK, CHIANCA, 2019, p. 82.
[4] TEIXEIRA, 2000.
[5] SHIMURA, ARAÚJO In: GOLDFARB, TOYANSK, CHIANCA, 2019, p, 107.
[6] Cf. LARAIA, 2009, pp. 94-101.    
[7] Cf. DELGADO, 2004.
[8] Cf. http://www.arquisp.org.br/liturgia/santo-do-dia/santa-sara-kali
[9] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120952
[10] https://www.youtube.com/watch?v=5RJG9AyImyA
[11] Cf. https://pastoraldosnomades.org.br/blog/especial/primeiro-cigano-elevado-aos-altares-conheca-a-historia-do-beato-zeferino-gimenez/?fbclid=IwAR37SSsy-HRdQrl_bkql0685oy_mpk0w0kp-1kjmGZIVfQCY-tQos9Qw0pQ
[12] Cf. https://www.magazine-hd.com/apps/wp/cate-le-bon-home-to-you/


Postagens mais visitadas deste blog

“Ciganos” ou “Roma”? Apenas e tão somente uma reflexão.

Ativismo e Representação Cigana - Artigo 1 - Mídia e Comunidades Ciganas