Ativismo e Representação Cigana - Artigo 1 - Mídia e Comunidades Ciganas


Mídia e comunidades ciganas: a construção do imaginário ocidental e o (anti) ciganismo
Por Aline Miklos, Gabriela Marques e Aluízio de Azevedo

Em maio de 2019, um deputado e seu assessor foram assassinados em plena luz do dia, no centro de Buenos Aires e em menos de 24 horas os assassinos foram presos. Até hoje não se sabe o verdadeiro motivo do crime, mas a origem étnica dos criminosos foi descoberta assim que foram presos e a partir de então a mídia e as autoridades políticas começaram a especular sobre o tema. A ministra de segurança da época, Patricia Bullrich, querendo mostrar a eficiência de seu governo, postou em sua conta de twitter a seguinte frase: "Todo clã mafioso cigano já está detido".
Esta afirmação serviu como uma carta branca a toda forma de preconceito. Assim, alguns jornais começaram a dizer que os ciganos costumavam andar armados. No principal jornal do país apresentaram um mapa mostrando onde estava concentrado o maior número de ciganos por bairro em Buenos Aires. Dois dias depois, a filha da pessoa que estava dirigindo o carro onde se encontrava o assassino foi à delegacia perguntar pelo seu pai e imediatamente presa por suspeita de participação no crime.
Com este evento, os jornais foram além: começaram a dizer que esta mulher era amante do assessor do deputado, que o crime era uma "questão de honra" e havia sido cuidadosamente premeditado. Diziam que crimes de honra eram corriqueiros nas comunidades ciganas. A foto desta mulher foi publicada em vários meios de comunicação e quanto mais ela dizia que não conhecia as vítimas, mais era condenada não só pela mídia, mas também pelos que destilavam comentários de ódio na internet. Por algumas semanas o número de casos de ataques racistas aumentou absurdamente no país e os ativistas que chegaram a ir a rádios e programas de televisão foram bombardeados por mensagens de ódio. A polícia não conseguiu provar nenhum vínculo entre uma das vítimas e a filha do motorista e logo ela foi liberada.
            A partir deste caso, poderíamos perguntar: quais as nuances entre a relação das comunidades ciganas e a mídia? A mídia contribui para a construção estereotipada e racista do imaginário sobre as comunidades, culturas e pessoas ciganas?  Os modos como a imprensa as abordam é diferente dos modos com que os filmes, as músicas, as peças de teatro, os livros de literatura ou os textos e teorias científicas? É sobre essas e outras perguntas que pretendemos refletir nesse texto, sem a pretensão de esgotá-las.
            A construção do imaginário ocidental e do imaginário brasileiro sobre @s cigan@s foi baseada tanto em estratégias de violência física, incluindo inúmeras leis anticiganas, como prisão, degredo, etc; como em estratégias de violência simbólica para sua opressão e exclusão. No campo simbólico, populações ocidentais criaram processos de identificação e diferenciação racistas e estereotipadores e construíram @ cigan@ como o seu “outro”, ao modo como construíram o outro oriental.
Não por acaso, os ciganos espanhóis atraíram tanto interesse de artistas e viajantes europeus no século XVIII e sua presença na sociedade espanhola era vista como a representação do Oriente no Ocidente, uma aproximação a um Outro que se acreditava distante (Sierra, 2017). Este processo de construção da outreidade também fez com que a maioria das narrativas construídas sobre a origem dos povos ciganos buscasse esta origem fora do que consideravam como "civilização", ou seja, fora do continente europeu. Desta forma, a teoria acadêmica sobre a origem indiana destes povos se encaixou perfeitamente neste cenário de exclusão.
Por seu estilo de vida e valores diferentes dos europeus, as pessoas ciganas  foram historicamente associadas a intrusos exóticos, sendo que uma das consequências desta construção simbólica é o fato de que a política ocidental tem sido genocida ao longo de séculos com a população romani, sendo o nazismo o exemplo mais cruel, quando 500 mil pessoas ciganas foram assassinadas, sob a justificativa de serem raças inferiores, ou não-humanos, se observarmos do ponto de vista da teoria decolonial.
            Identidade e estereótipos - A questão da nomeação/classificação “ciganos” é um dos processos de opressão simbólica contra as pessoas ciganas. Essa realidade é reverberada nos dicionários de língua portuguesa e língua espanhola, que os classificam como “trapaceiros”. O mesmo ocorreu com a construção conceitual da palavra “Ciganos” ou da “cultura cigana”, o estudo de sua história, grupos e tradições. Os estudos ciganos, chamados também de “ciganologia”, de acordo com Moonen (2011) foi bastante anticigana durante séculos e auxiliou na construção deste imaginário racista e hiper negativo.
Um exemplo desta realidade é o escritor Grellmann, que foi traduzido para várias línguas. Segundo Moonen (2011, p. 132) o autor “só teve contatos esporádicos com alguns poucos ciganos e que, em lugar de realizar pesquisa de campo, preferiu citar outros autores, inaugurando assim uma prática que tornar-se-ia comum entre os ciganólogos”. 

“Grellmann costumava citar fontes jornalísticas sensacionalistas. Num capítulo sobre “Comidas e Bebidas Ciganas”, por exemplo, transcreveu a notícia de jornais de 1782 que acusava os ciganos de serem canibais, comedores de carne humana. Na época, 84 ciganos foram presos como suspeitos de terem assassinado e depois comido algumas pessoas desaparecidas: 41 foram decapitados, enforcados ou esquartejados. Em 1783, logo após a publicação do livro, que se tornou um best-seller mundial com edições em várias línguas, ficou provado que esta acusação não teve o menor fundamento e que os 41 ciganos mortos (e os outros ainda presos) tinham sido inocentes: as pessoas que supostamente tinham virado churrasco cigano, reapareceram mais vivas do que nunca (MOONEN, 2011, p. 132).
            Bens simbólicos e a opressão social - E o que a imprensa e a mídia tem a ver com tudo isso? Como órgãos mediadores comunicacionais, formadores de opinião e divulgação de informações, notícias e outros produtos simbólicos das áreas artísticas e culturais, tem tudo a ver. Elas dialogam com a ciência e o imaginário coletivo, mutuamente, reforçando, criando e mantendo tais visões negativas e estereotipadas das pessoas ciganas. Em outras palavras, podemos dizer que essas indústrias do entretenimento são empresas que possuem os seus interesses próprios, sendo pautadas e pautando os fluxos, as informações e os temas importantes para a sociedade.
            Assim, quando falamos sobre a representação das comunidades ciganas nos meios de comunicação, temos que situar o debate no contexto mais amplo da representação dos grupos minoritários nesses espaços. Vale mencionar que o tema está diretamente influenciado pelo modo como a mídia se organiza na maior parte do mundo, ou seja, como parte de grandes grupos empresariais, sejam eles exclusivamente do campo da comunicação - onde  o mesmo grupo é dono de emissoras de rádio, de televisão, de jornal impresso, revista e páginas na internet - ou não exclusivamente deste campo, onde  grupos empresariais de outros setores se infiltram nos meios de comunicação, vistos como  mais uma oportunidade de fortalecer seus negócios (RAMONET, 2012; CAGÉ, 2016).
            Esta informação é importante porque nos ajuda a entender quem controla os meios de comunicação e, portanto, seus conteúdos. Classificados por muitos teóricos como o 4o poder, os meios de comunicação formam parte das estruturas de decisão, influenciando e sendo influenciada por elas. No caso, estamos falando de poder simbólico, o poder de fazer ver e fazer crer (Bourdieu, 1989). Assim como ocorre num mercado de bens físicos, os bens culturais em suas mais diversas linguagens (meios de comunicação, teorias científicas, cinema, música, literatura, teatro, etc), os bens culturais podem ser comparados a um mercado simbólico, em que são produzidos, circulados e consumidos e isso não apenas do ponto de vista da mídia, como de todo e qualquer ato discursivo (Araújo, 2002). Há negociações para que um ponto de vista seja aceito e legitimado. Há conflitos e tensões entre os interlocutores de um ato comunicativo para a prerrogativa da última palavra (Pinto, 2002).
Por isso, não é de se estranhar que seus profissionais, tidos como trabalhadores de perfil intelectual e/ou criativo, façam parte em sua maioria da sociedade majoritária (ROSS; Playdon, 2001); enquanto os grupos minoritários, incluindo os ciganos, ocupem lugares de interlocução marginais nas redes de comunicação tradicionais (Araujo 2002), devido a uma série de fatores e fontes de mediação, que são postas em prática e ação por meio de contextos sociais, econômicos, políticos e culturais que incluem, por exemplo, o histórico de racismo e a exclusão social (Silva Júnior, 2018).
            A ausência de pessoas pertencentes a grupos minoritários como agentes destes meios de comunicação faz com que eles sejam representados, basicamente, de duas maneiras: por meio de estereótipos hiper negativos ou por meio da exotização e folclorização seja de sua aparência, seja de sua cultura e costumes (OLEAQUE, 2014). Quando nenhuma destas duas formas de representação acontece, o que se nota é a invisibilização, a ausência desses grupos, suas narrativas, filosofias, olhares sobre o viver e ver o mundo, mitologias e saberes; seja nos conteúdos informativos, seja nos conteúdos ficcionais (WILLEM, 2010), fazendo com que suas vozes e discursos sejam silenciados, assim como foram silenciados historicamente.
Este padrão pode ser aplicado às populações ciganas em diferentes países. Entre os estereótipos negativos podemos destacar, tanto nos conteúdos ficcionais, como não-ficcionais, que as pessoas ciganas estão sempre relacionadas à pobreza ou ao mundo do crime, a conflitos, assassinatos, brigas, roubos e outras atividades ilegais. No caso do conteúdo informativo, a situação é ainda mais grave já que diferentes códigos deontológicos e éticos da profissão de jornalista orientam a não mencionar a origem étnica das pessoas mencionadas nas matérias (GONÇALVES, 2019). Qual a diferença em mencionar que um roubo foi feito por um cigano ou por um branco? A mesma que, na lógica do jornalismo comercial, faz com que negros flagrados com drogas sejam traficantes enquanto brancos sejam usuários. Por isso, não é possível encontrar nenhuma manchete que diga “Três brancos são presos após roubo de carros”.
            Folclorização x Ativismo - Já os casos de folclorização se dão, por um lado, quando os meios de comunicação dão destaque a algum membro da comunidade cigana devido à sua habilidade em alguma área: a dança, a música, o teatro, o esporte. Estes sujeitos são destacados como portadores de um dom e uma exceção em suas comunidades. Por outro lado, a exotização acontece como a outra face da moeda do desconhecimento. Neste sentido, os sujeitos ciganos são representados pelo mistério, como se fossem portadores de tradições e costumes que fogem do entendimento da sociedade majoritária, mas que são admirados por  representarem algo distante de sua realidade.
No Brasil, podemos exemplificar estes casos pela relação fácil que a maioria das pessoas faz entre ser cigano e ser livre, ou entre ser mulher cigana e ser atraente e conquistadora, ou entre ser cigano e ser destemido. Estes estereótipos estão presentes em diversas músicas brasileiras e, de algum modo, na clássica telenovela Explode Coração. Quando não se encaixam em nenhum dos exemplos mencionados acima, as populações ciganas estão simplesmente ausentes dos meios de comunicação, esquecidas, silenciadas e invisibilizadas na complexidade de seus modos de ver e viver o mundo. Tudo isto como um espelho da vida cotidiana, influenciando e sendo influenciado pelo dia a dia de discriminação e preconceitos que o Anticiganismo produz.
            Outra  tendência dos meios de comunicação é a  homogeneização das pessoas romanis, sob o termo genérico “ciganos”, do mesmo modo que ocorreu com os povos indígenas e os povos negros, sendo classificados independentemente de diferenças culturais, linguísticas, de costumes e organização. Mas é importante destacar que os diferentes grupos ciganos não seguem o mesmo processo de construção de suas culturas e identidades. Não há uma essência cultural cigana única, mas sim múltiplas identidades, com distintos grupos, subgrupos, que variam conforme a região e o país onde se movimentam. Os diferentes grupos ciganos costumam se autoidenficar como Rom, Kalon ou Sinti, grupos que possuem costumes, línguas e tradições diferentes e devem ser entendidos em sua diversidade e não como um homogêneo único, como costuma ocorrer nos meios de comunicação, ampliando os estereótipos acerca dessas populações. 
No decorrer dos tempos todos estes grupos se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou migraram inclusive para as Américas. Diante desta realidade, resta às comunidades ciganas buscar espaços alternativos para amplificar suas vozes. Por isso, nos últimos anos foi possível ver uma grande atuação de ativistas ciganas e ciganos na internet, fazendo uso especialmente das redes sociais .
Um exemplo poderia ser a organização "Gitanas feministas por la diversidad" que possui contas em todas as redes sociais e, inclusive, oferecem cursos online sobre feminismo cigano. Na América Latina, o coletivo #OrgulhoCigano mantém uma live todas as semanas no Instagram sobre temáticas relacionadas às comunidades ciganas. Existem também iniciativas que pretendem monitorar o discurso de ódio tanto nos meios de comunicação quanto nas redes sociais, como é o caso de Romani Pativ, ligada à Plataforma Khetane, da Espanha.
            Estas iniciativas se colocam não só como um espaço alternativo para fazer frente ao discurso da mídia hegemônica, mas também como uma possibilidade de construção de redes entre ciganas e ciganos de diferentes partes seja em nível nacional, seja internacional. Isso possibilita não só o seu fortalecimento enquanto grupo, como também força os meios de comunicação tradicionais a mudar pouco a pouco seus discursos, crítica tão necessária à mídia já que, segundo os próprios relatores sobre questões das minorias da ONU, há um uso generalizado de estereótipos nas representações dos ciganos, suas culturas e identidades.

Referências Bibliográficas
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OLEAQUE, Joan M. Los gitanos en la prensa española – Variación y reiteración de los planteamientos de los diarios ABC, El País y La Vanguardia en la representación de los gitanos como grupo (1981-2010). Tesis Doctoral Universitat de València: Valencia, 2014.
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PINTO, M. J. Comunicação e Discurso: Introdução à Análise de Discursos. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
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WILLEM, Cilia. ‘Roots and Routes’ - Young people from diverse ethno-cultural backgrounds
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