Ativismo e Representação Cigana - Artigo 2 - Ciganologia
Princípios e desafios da Ciganologia brasileira
Brigitte Grossmann Cairus
Apesar de constituir um
importante elemento do tecido multiétnico da nação brasileira, a história dos
ciganos brasileiros manteve-se praticamente ignorada até o final do século vinte.
Décadas depois de afro-brasileiros e indígenas terem conquistado sanção
oficial, o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva finalmente
reconheceu os ciganos brasileiros como uma minoria importante do Brasil
multicultural ao inaugurar o Dia Nacional do Cigano, em 2006.[1]
Este breve texto explora como a
ciganologia brasileira foi, a princípio, desafiada pela construção própria do
conceito de brasilidade durante as seis décadas entre 1880 e 1948, e os
principais problemas relacionados aos estudos ciganos frente aos paradigmas
raciais dominantes de origem.
Os ciganólogos brasileiros
Alexandre José de Mello Moraes Filho, José D'Oliveira China e João Dornas Filho
estavam entre os primeiros a situar o cigano no panorama social brasileiro.
Escrevendo num período que abarca quase sete décadas, esses trabalhos sofreram,
ao longo do tempo, algumas alterações de acordo com as nuances de seus momentos
históricos. Mas, de modo geral, compartilharam mais semelhanças do que
diferenças em se tratando de argumentos e de conteúdo.
Em 1886, o poeta, folclorista
e médico Alexandre José de Melo Moraes Filho, um pioneiro dos estudos ciganos
no Brasil, apresentou a ideia de que os ciganos eram a solda que amalgamava os
outros três componentes raciais (indígenas, africanos e portugueses), formando
uma nova raça mestiça brasileira. O ciganólogo português Adolfo Coelho
respondeu em 1892 que isso era um exagero: “Não é fácil de admitir, sem outras
provas, que no brasileiro haja tanto sangue cigano como o autor parece estar disposto
a aceitar” (COELHO, 1995, p. 240-241).[2]
Romântico defensor das classes populares e de suas ricas culturas, Moraes Filho
pode ter permitido a si mesmo certos exageros e talvez tenha escrito seus
poemas ou prosa de ficção presentes
em Cancioneiros dos Ciganos em
coautoria com os ciganos, material este
coletado na Cidade Nova e em Valongo, Rio de Janeiro, regiões que eram
habitadas por ciganos Calon em meados do século XIX (MOTA, 1982, p. 8). Moraes
Filho não foi o primeiro a escrever sobre ciganos brasileiros, mas ele foi
certamente um dos primeiros a sugerir que estes contribuíram significativamente
para a cultura brasileira e para a sua complexa dinâmica étnica (RIBEIRO, 2006,
p. 22-23).[3]
Moraes Filho afirmou que o
cigano merecia ser reconhecido como um dos quatro elementos espirituais do
Brasil. Segundo ele, a cartomante cigana teria mais influência espiritual do
que o caboclo, o português e o negro:
Em todo o caso, o que cumpre estabelecer é que na criação
informe de nossa teogonia nacional destacam-se quatro individualidades: o
caboclo, o português, o negro, dominando no degrau mais elevado a cigana que lê
a sina, que possui um ritual completo de oráculos, de pragas e exorcismos. (MORAES
FILHO, 1981, p. 45).
Além de enfatizar a relevância
do cigano no tecido étnico e cultural brasileiro, Moraes Filho foi o primeiro a
estudar em profundidade o status dos ciganos ibéricos no Brasil colonial.[4] Ele
apontou para o fato de que os ciganos ibéricos estavam presentes no Brasil
desde o século XVI e que a Coroa Portuguesa teria forçado uma migração em massa
para essas terras a partir do século XVII. Ao trazer à tona os alvarás
(documentos legais reais) que geraram as primeiras migrações de ciganos como
degredados da África para o Maranhão, no final do século XVII, e de Portugal
para Pernambuco e Bahia, no início e em meados do século XVIII, Moraes Filho
(1981, p. 59) abriu uma porta importante para o estudo da migração cigana
forçada para as Américas e para a África durante a era colonial. Muitos
autores, incluindo José D´Oliveira China, Ático Vilas-Boas da Mota, Rodrigo
Corrêa Teixeira, Bill Donovan e Geraldo Pierone, beneficiaram-se com o trabalho
de Moraes Filho, especialmente no que diz respeito à questão de degredados e ao
status dos ciganos no Brasil
colonial.
Cinco décadas após o trabalho
de Alexandre José de Mello Moraes Filho, o próximo ciganólogo brasileiro foi o
professor e administrador José de Oliveira China, cuja obra Os Ciganos do Brasil foi publicada em
1936 (CHINA, 1936). China tomou de Moraes Filho uma quantidade considerável de
seu trabalho, mas fez questão de apresentar, de uma forma mais ordenada, alguns
relatos de viajantes do período colonial, relatórios de jornais e registros
policiais a respeito de ciganos de diferentes estados brasileiros na década de
1930. Ele cuidadosamente reproduziu os relatos de Moraes Filho acerca do papel
dos ciganos como meirinhos (oficiais de justiça) em meados do século XIX no Rio
de Janeiro (MELLO et al., 2005) e explicou a distinção entre os ciganos
brasileiros de origem ibérica e os “ciganos estrangeiros” provindos do Leste
Europeu ou dos Balcãs, que começaram a chegar ao Brasil no final do século XIX[5]. Ele
também dedicou um capítulo inteiro aos estudos etnográficos, em uma tentativa
de fazer uma comparação com a análise de Coelho a respeito do “fenótipo dos
ciganos (portugueses)". Num momento em que os intelectuais reabriram a
discussão do Brasil como sendo uma nação moderna e descartaram os ideais das
diferenças raciais como inatas e a degeneração de mestiços, China (1936) trouxe
uma nova contribuição para a discussão da ciganidade no Brasil através da
elaboração sobre a miscigenação dos ciganos com os negros. É importante notar
que China (1936) publicou o seu livro apenas alguns anos mais tarde do que Casa Grande e Senzala (originalmente
publicada em 1933), de Gilberto Freyre.
O último ciganólogo brasileiro
a ser considerado aqui, João Dornas Filho, foi um jornalista e folclorista
autodidata, além de membro da Academia Mineira de Letras. Em 1948, ele comparou
os ciganos com outra minoria “indesejável” de ascendência europeia. Sublinhando
a brasilidade dos ciganos, Dornas Filho afirmou que noventa por cento dos
ciganos que ainda vivem no nosso país são verdadeiramente brasileiros, falando
português e sua língua original – o jargão; o cigano, como o judeu, é um dos
milagres de sobrevivência mais surpreendentes que a história já conheceu. Em
outras palavras, Dornas Filho defendia a ideia de que, ao mesmo tempo que os
judeus e os ciganos foram milagrosamente capazes de manter seus traços
culturais estrangeiros, incluindo a língua, eles também foram capazes de adotar
o português e a cidadania brasileira.
É interessante comparar as
ideias de Dornas Filho com as de Moraes Filho a respeito da suposta
predisposição dos ciganos para a miscigenação. Para Dornas Filho, os ciganos
não teriam uma religião ou um forte senso racial que poderia impedi-los de se
casarem com o gadjé. Para Moraes
Filho (1981), os ciganos serviam como uma solda para a miscigenação entre as
outras três raças. Para tanto, eram vistos como uma espécie de coringa racial,
um elemento-surpresa que a qualquer momento poderia mudar a dinâmica do jogo
racial para melhor, ou para pior. Dornas Filho (1948) também traçou alguns
paralelos culturais entre judeus e ciganos, com ambos dedicados à manutenção de
suas tradições diferentes, não católicas, língua distinta e amor boêmio para as
artes e a música.
De acordo com Dornas Filho
(1948), o estilo de vida nômade realmente alocou os ciganos num lugar distinto
dos afro-brasileiros e indígenas. Pelo fato de serem nômades, independentes e
não participantes dos processos de industrialização e de urbanização, a maioria
dos brasileiros parece ter percebido os ciganos como povo de passagem, e por
isso mesmo, menos integrados à já complexa ideia de nação brasileira. Como
consequência, os ciganos não foram vistos como participantes de confiança na
construção da identidade nacional brasileira moderna.
Os poucos ciganólogos que
abordaram a questão cigana no Brasil entre 1880 e 1940 enfrentaram desafios
conceituais em abordar o lugar racial e étnico dos ciganos na sociedade
brasileira. Além de contribuírem parcialmente para a cristalização de
estereótipos que categorizava os ciganos como ladrões, criminosos, indesejáveis
e como sendo o “outro exótico”, os autores analisaram o cigano em luzes
ligeiramente distintas, mas com intenções semelhantes. Para Mello de Moraes Filho,
eles foram a solda que fundia as raças da mestiçagem brasileira; para José
D'Oliveira China, eles não eram uma raça “pura”, mas sim um grupo étnico
mestiço que permitia a miscigenação com os negros. Para João Dornas Filho, eles
também foram os promotores da miscigenação, mas foram finalmente vistos como
brasileiros “puros”, apesar de seu estilo de vida nômade e de seus diferentes
valores culturais. Ao retratar os ciganos como agentes da miscigenação e da
transculturalização, cada um desses autores tentou, em seus próprios termos,
legitimar o cigano como sendo um “verdadeiro” brasileiro. Mas, considerando-se
o fato de que a maior parte da discussão sobre raça durante esse período foi
dominada pela discussão de indigenismo e negritude, podemos entender por que os
ciganos não eram apenas socialmente, mas também academicamente, deixados de
fora da discussão.
O problema principal
relacionado aos estudos ciganos no Brasil reside em dois fatos: (i) a
discriminação e a invisibilidade social e acadêmica que os ciganos enfrentam
desde os tempos coloniais, o que impediu, até recentemente, um maior interesse
e uma melhor compreensão de sua identidade; e (ii) a força de paradigmas
raciais dominantes de origem, que enfatizam apenas os afro-brasileiros,
portugueses brancos e povos indígenas. Apesar de terem traços culturais
distintos (mas não homogêneos), como a linguagem, a vestimenta e os valores
morais, os ciganos não formam um grupo coeso fenotipicamente no Brasil. Se, em
teoria, eles foram até o século passado geralmente categorizados como uma “raça
escura”, na prática, devido à sua miscigenação, é impossível atribuir aos
ciganos uma categoria de cor específica. Eles podem ser vistos como brancos,
negros ou morenos.
Se no Brasil não são
geralmente percebidos (e até mesmo se identificam) como uma raça separada, isso
se relaciona mais com o conceito brasileiro de raça como pertencente a um grupo
étnico específico. Os ciganos tendem a construir a sua identidade através de
valores e símbolos étnicos, não por sua cor. Sendo percebidos continuamente
como estrangeiros, estranhos e inassimiláveis, eles não foram, até finais do
século XX, totalmente aceitos como brasileiros.
REFERÊNCIAS
CAIRUS, Brigitte G. Ciganos
Roms no Brasil: imagens e identidades diaspóricas na contemporaneidade. 2018.
279 f. Tese (doutorado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de
Ciências Humanas e de Educação, Programa de Pós-Graduação em História.
Florianópolis, 2018. Disponível em <http://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/000068/000068ac.pdf>. Acesso em 14 junho 2020.
CHINA,
José B. D'Oliveira. Os ciganos do
Brasil. São Paulo: Imprensa Official do Estado, 1936.
COELHO,
Adolfo. Os ciganos de Portugal: com
um estudo sobre o Calão. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
DORNAS
FILHO, João. Os ciganos em Minas Gerais.
Belo Horizonte: Movimento Editorial Panorama, 1948.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo:
Global Editora, 2005.
MORAES
FILHO, Alexandre José de Mello. Os
ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
MOTA,
Ático Vilas-Boas da. Contribuição à história da ciganologia no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Goiás, Goiânia, n. 10, p. 3-42, 1982.
RIBEIRO,
Cristina Betioli. Ladrões de crianças: os primeiros estudos sobre a tradição
cigana na cultura brasileira não escaparam dos estereótipos que perseguem o
grupo. Revista de História da Biblioteca
Nacional, p. 22-25, 2006.
[1] O Dia do Índio foi criado por Getúlio
Vargas em 1943, enquanto o Dia da Consciência Negra tem sido celebrado desde a
década de 1960 e oficializado em 2003. O Dia Nacional do Cigano, a ser
comemorado no dia 24 de maio de cada ano, foi decretado pela Casa Civil da
Presidência da República no dia 25 de maio de 2006. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/dnn/dnn10841.htm>.
Acesso em: 15 jun. 2020.
[2] Neste livro, originalmente escrito em
1892, Coelho escreve um capítulo sobre os ciganos brasileiros, baseado
principalmente no trabalho de Moraes Filho. Muito relevante é seu apêndice em
documentos portugueses – Alvarás.
[3] Cristina Ribeiro menciona que antes de
Moraes Filho tivemos o famoso Memórias de
um Sargento de Milícias (1852), onde Manuel Antônio de Almeida descreve os
ciganos como sendo “acostumados à vida vagabunda”.
[4] Mais descrições sobre os ciganos podem
ser encontradas em Moraes Filho (2004, p. 19-39).
[5] Coelho escreveu em 1892: “Nao podemos,
sem mais, julgar que essas quadrilhas errantes sejam formadas, no todo ou em
parte, de ciganos originarios de Portugal, porque para o Brasil emigram, desde
por alguns annos pelo menos, grupos de tsiganos europeus de diversas
proveniencias, parte dos quaes tem vindo ate embarcar ao Tejo” [sic passim]
(CHINA, 1936, p. 93-94).