Decolonialidade, “decolonialidade” e o Cigano Assimilado

Decolonialidade, “decolonialidade” e o Cigano Assimilado

Igor Shimura

 


 

“Sou cigano e isso significa muita coisa. Significa principalmente que mantenho meus costumes, meu jeito de pensar, minha moral e o jeito de me comportar. Que ninguém queira incutir na mente do meu povo esses pensamentos da moda, estranhos para nós. Eu e meu povo somos mais fortes do que essas coisas esquisitas. Não aceitaremos”.

Sr. Geneci Calon, Cigano, São Paulo.


NOTA PRÉVIA: essa é só uma notinha, querendo ser ensaio, quase despretensiosa, evidentemente curta e não científica. Uma reflexão um tanto superficial, que carece de mais tempo, de mais substância e certamente de mais dedicação e leitura... vale a reflexãoNão poderemos dar um mergulho, mas podemos molhar os pés... Tenham paciência com a linguagem aqui utilizada, um tanto simplória, mas considero o público a que se destina, contemplando os desdobramentos. Encorajo o estudo sobre o pensamento decolonial, importantíssimo para que a lógica colonial seja horizontalizada e as minorias subalternizadas durante tantos séculos se apropriem do direito à voz.  

 

Em agosto de 2021 o mundo assistiu, estarrecido, os desdobramentos da retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão. Sua saída (almejada há anos), depois de duas décadas de ocupação, gerou uma enorme convulsão social no país. O grupo fundamentalista Talibã voltou ao poder reestabelecendo uma ditadura teocrática, sob a ótica de uma rígida interpretação do Alcorão. Portando armas e fuzis os seus guerrilheiros violam direitos civis, oprimem mulheres, matam pais de família e punem qualquer pessoa que manifeste pensamento contrário. Utilizando-se, dentre outras coisas, do anseio (legítimo) pela descolonização americana, a agressividade, a violência moral, a misoginia, o machismo, a homofobia, o ódio e outras formas de intolerância tem sido justificada pelos extremistas. 

E tal como Manuela Carneiro da Cunha fez uma diferenciação entre "Cultura" e Cultura em Culturas com aspas (2014) diferencio aqui decolonialidade e "decolonialidade". As ações do Talibã tem sido associado por alguns, equivocadamente ou não, como uma espécie de fenômeno “decolonial” (com aspas, por ser um paralelismo de código invertido); certamente uma versão fake, usurpadora do sentido primeiro do debate decolonial legítimo da luta pelas vozes dos oprimidos. Obviamente sabemos que isso (o que o Talibã faz) não é, de forma alguma, ao que se propõe o debate decolonial (sem aspas, como proposta de enfrentamento a colonialidade, em defesa de oprimidos e subalternizados). O que o Talibã faz é, de certa forma, uma "recolonização" (troca uma coisa para impor, "goela abaixo", outra). Para algo rápido sugiro que assista a explicação da Mariam Chami (Cf. QUEBRANDO O TABU, 2021). 

Esse é um tema para lá de debatido, mas que continua em pauta em todo o tempo, principalmente no ambiente acadêmico (e militante). Seria muito importante pensarmos mais a fundo sobre o que é colonialidade e decolonialidade, mas o espaço de um blog nos limita, o que é uma pena. Acho que devemos aqui, como algo rápido, nos guiar pelos sentidos e significados gerais da colonialidade/decolonialidade, tendo em mente o processo de "recolonização" de que falei logo acima. 

Recentemente alguns, no contexto dos estudos ciganos, acreditando ter descoberto a roda, estão buscando se estabelecer como “ativistas” erga omnes, repetindo esses conceitos para tudo o que se relaciona aos povos ciganos. Como adolescentes que acabaram de descobrir uma gíria ou como crianças que ganharam seu primeiro doce, se deleitam ao som da palavra “decolonialidade”, arrogando-se inadvertidamente como oráculos inerrantes da mesma, ao sabor de suas intenções políticas (natimortas, diga-se de passagem). A questão é que eles fabricaram um produto pirata chamado “decolonialidade dos estudos e do ativismo cigano” utilizando-se da matéria-prima oriunda da estratégia “branca” - a perspectiva colonizadora, que opera na base da força, da agressividade tresloucada e do constrangimento, cuja maquiagem em tom “oprimido” lhes abre algumas portas, onde adentram com crachá de "debate produtivo" e decolonial. Infelizmente conseguem colonizar algumas mentes, o que lhes faz acreditar estarem no caminho certo. 

Com isso fica um tanto evidente essa coisa da "recolonização": apaga-se a memória e reputação de alguém outro/a e enfia goela abaixo do ambiente acadêmico construído por predecessores os novos "iluminados 'decoloniais'" (na maioria personagens caricatos construídos na base do grito) que arrotam serem portadores de "lugar de fala". Estão, assim, produzindo memes de si mesmos, buscando a "lacração", o "causar", os "likes" e os "seguidores", o que lhes interrompe a possibilidade de cooperação e inativa seu pensamento produtivo.   

Portando “fuzis narrativos” e dispostos a dar chutes, pontapés e a "cancelar" reputações de nobres, impõem a tal “decolonialidade” (com aspas) através da fiscalização, vigilância e punição deslegitimada contra pessoas que expressem pensamentos críticos. Vigiam tudo o que diz respeito “aos ciganos”: eventos, palestras, mesas, comentários, grupos de WhatsApp etc. Punem publicamente... no mercy... é o espírito "decolonial" talibanez, incapaz de dialogar pacientemente, inteligentemente, construtivamente... sabemos, é um troço fadado ao eterno fracasso em contexto diferente de sua origem, afinal é também without intelligence. Insensatos, não percebem que beiram a fronteira da judicialização. 

Falar de colonialidade/decolonialidade, não obstante ser um assunto de expressa importância, não pode ser, evidentemente, o eixo central de todo e qualquer debate relacionado aos estudos ou ativismo cigano, sob o risco de se criar justamente paradigmas coloniais, impositivos e inflexiveis de toda e qualquer perspectiva em relação ao campo, que os mais experientes (não os teens) sabem, acontece em diferentes dimensões, macro e micro. Pretender-se porta-voz da “decolonialidade” é, por assim dizer, incorporar e tornar-se a própria biase de qualquer empreendimento intelectual e político, ignorando as múltiplas alteridades, pontos de vista, afetos, experiências etc.

A despeito dos debates acerca do pluralismo jurídico, perspectivismos e pluriversalismos, aquilo que já está legalmente posto e que rege os direitos fundamentais, oferece e assegura direitos de forma prática, exequível. Coletivos ciganos étnicos que vivem "lá na ponta” não podem ter as vozes tomadas de assalto por indivíduos e/ou coletivos que não lhes dizem totalmente respeito, que apenas afirmam lhes dizer totalmente respeito. Tais indivíduos e/ou coletivos partem de perspectivas próprias, construídas em suas leituras rígidas, ao estilo Talibã, que sugere cortar cabeças, apagar histórias, destruir reputações, esmagar os inimigos.  

Todo cigano tem o direito de falar por si. E nenhum indivíduo ou coletivo cigano, ou não cigano ou pretensamente cigano, tem o direito de falar por todos, afinal há de se respeitar o princípio da decolonialidade - o nobre debate. Pretensos “decolonialistas” que colonizam espaços de fala dos que até hoje não tiveram espaços de fala precisam se desintoxicar da colonialidade a qual representam (por estarem deliberadamente submetidos) a fim de que não reproduzam o mesmo modelo sob a égide da decolonialidade sobre outros, pares ou não. O importante debate decolonial não pode ser utilizado para colonizar.

Aquele que se propõe a representar, militar e que quer colaborar (realmente colaborar) com o direito de fala dos povos e comunidades tradicionais ciganas precisa pensar a partir da alteridade (e não de uma leitura talibanesa da decolonialidade... ou "decolonialidade"). As vozes que precisam ser ouvidas são as daqueles que experimentam “na pele” os sofrimentos que a sociedade ampla e o Estado impôs considerando a sua condição étnico-racial e social, e não daqueles que discursam "acerca desses sofrimentos ciganos", ou que apenas "julgam terem sofrido" o que as comunidades ciganas mais oprimidas realmente sofrem (ou sofreram). "Os ciganos", senão todos ao menos grande parte, não podem, não devem e não aceitam ser representados por uma ou duas perspectivas exógenas com credenciais industrializadas e etiquetadas como "legitimamente cigana", como se fossem endógenas, pois as perspectivas são múltiplas. Ativismo barato é como uma máscara sem elástico... não se fixa, fica no rosto por pouco tempo e cai a cada movimento.     

Os povos ciganos estão contemplados na legislação brasileira em diferentes diplomas legais, dentre os quais o Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. O referido decreto define essa categoria étnica como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

É importante ressaltar que os povos ciganos, diante de seu histórico de perseguições, se contextualizam, se regionalizam e estabelecem seus modelos. O que ocorre com e entre os ciganos Domari que participam de guerra na Síria, ou com os Queer Roma na Europa, ou com os islâmicos na Turquia não se reflete no contexto regional, no microuniverso da comunidade "do seu Zé" e da "dona Maria", ali nas barracas instaladas no periferia da grande cidade brasileira. 

Uma breve análise da definição do decreto indica a manutenção de tradições, códigos culturais, modelos organizacionais, valores e visão de mundo. Sabemos que esse complexo está relacionado ao que chamamos de “cultura”, termo que nos renderia uma longa e cansativa discussão, considerando pelo menos uma centena e meia de definições. A questão é que dentre as suas diversas características está o dinamismo - a cultura muda em diferentes direções. Culturas “tradicionais” são mais resistentes, pois diferentemente das que tecnicamente são categorizadas como “progressistas”, manifestam uma total interação com a história, operando a repetição de costumes, hábitos, axiomas, padrões comportamentais morais, sociais, religiosos etc. visando a perpetuação de um ethos. É óbvio, aos entendidos, que a cultura não é e nem pode ser engessada. Tudo isso rende uma excelente discussão. 

Enquanto uma cultura dita “progressista” tende a assimilar mudanças com maior rapidez, optando por rompimentos com o “tradicional” e estabelecendo novos códigos, importados de outras culturas ou não, a cultura “tradicional” contemplada no decreto valoriza a constância e a preservação de valores morais, sociais, religiosos, familiares etc. Por isso é de se esperar que as sociedades tradicionais, como diz Giddens (1990, p. 15), venerem o passado e valorizem os símbolos, considerando que esses “contém e perpetuam a experiência de gerações”. O campo etnográfico mostra que as comunidades ciganas brasileiras são caracterizadas pelas tradições que os “distinguem da sociedade nacional” (Convenção nº 169, Art. 1º), enquadrando-se, portanto, ao que define o Decreto 6.040/2007. As exceções seriam indivíduos que, ciganos ou pretensos ciganos, não vivem (ou não viveram) em meio ao contexto tradicional das comunidades étnicas ciganas.

Ainda que, por interagirem com a sociedade ampla, as comunidades tradicionais experimentem diversas mudanças diante de fatores endógenos e exógenos, elas se auto-referenciam na memória, nos elementos do passado, na moral estabelecida, códigos de conduta, nas crenças e nos valores pretensamente permanentes. Seu olhar não está no “novo”, que é visto como “incerto”, “impreciso” e “estranho”, mas no estável, que é visto como unificado, histórico e, portanto, tradicional.

O "conservadorismo sociológico" das tradições ciganas é evidente nas várias representações políticas que se apresentam ao poder público (no seu vasto espectro) nos vários movimentos em busca de visibilidade. As demonstrações de cultura material como as indumentárias, os sinais corporais, os adereços etc. refletem aspectos imateriais, como moral, pudor, decência, padrão sexual, fé, mitologia, ordem, compromisso, mecanismos de defesa, relação entre gêneros, idioma etc. Há estruturas valorativas que mantém a tradição, já que essa, por sua vez, nasceu de experiências que conceberam a visão de mundo (elemento de resistência a “revoltas” e “revoluções” abruptas, e que serve de dispositivo de segurança e estabilidade identitária).       

Isso me faz lembrar de um embate que assisti há alguns anos, entre mulheres ciganas e um grupo de feministas, numa universidade no interior da Bahia. O feminismo, como ideologia legítima e importante no contexto dos debates sociais, encontra grande ressonância nas searas da sociedade ampla, seja na mídia, na educação, na política e na academia, no entanto, ao se encontrar com microuniversos mais tradicionais, em que as perspectivas e a identidade se correlaciona com modelos "de atrás", se percebem como elemento estranho e potencialmente fraturante.

O que relato também tem seu oposto, em outras experiências, já que alguns movimentos e indivíduos ciganos e ciganas tendem a dialogar com novas ideologias. O que ocorreu, no entanto, na referida ocasião, foi o seguinte: o líder de uma comunidade palestrava sobre alguns aspectos da sua cultura local e em determinado momento discorreu rapidamente sobre o “papel da mulher cigana”. No auditório havia tanto mulheres ciganas como não ciganas. No momento das perguntas um grupo de mulheres feministas na plateia, não ciganas, o questionaram de forma bastante crítica em relação ao que havia sido exposto, sobre o papel da mulher cigana (que estava basicamente relacionado ao cuidado familiar, preparo de alimentos, educação dos filhos, fidelidade conjugal etc.). As respostas desagradaram o grupo, que começou a se manifestar de forma acalorada, com falas veementes e em voz alta, batendo palmas e dando gritos de guerra.

Vendo aquilo algumas mulheres ciganas se levantaram e saíram em defesa do seu parente (marido, sobrinho, primo etc.), reagindo às manifestações, se dirigindo às mulheres não ciganas feministas: “somos mulheres ciganas e temos uma tradição. Não queiram nos colonizar com as suas ideias que são estranhas para nós. Somos felizes servindo nossos filhos, maridos e irmãos”. Lembro-me especialmente de uma das mulheres ciganas falando algo como “não somos como os índios do passado que foram colonizados. Parem de agir como quem colonizou eles. Não aceitamos”.

Essas palavras, em voz firme, em alto e bom som, vindo de ciganas tipicamente vestidas, com seus traços fisionômicos evidentes e com sotaque bilíngue, impôs o silêncio no auditório. Era a autoridade do “lugar de fala” que se mostrava como resistência invertida exatamente a quem tanto discursa sobre o assunto. Foi uma expressão de "porta-vozes" tradicionais diante de ideias progressistas que não encontravam eco e identificação na perspectiva de uma comunidade tradicional. É um recorte interessantíssimo para pesquisas dos estudos ciganos. 

O que ocorre é que aquele embate tinha como eixo a ideia da perpetuação identitária, já que a ciganidade (a identidade étnica cigana) sempre foi oprimida, subjugada, marginalizada e constantemente atacada ao longo da história. Ciganos geralmente são proibidos de serem ciganos, e quando isso sê-lhes é possível sempre há alguém (ciganos "de fora" e/ou não ciganos) querendo lhes mostrar “como eles devem proceder” para "uma melhor vivência" da ciganidade. “Seja assim, seja assado, aceite isso e aceite aquilo" - eis aí um tipo de colonização, às vezes com rótulo "decolonial", com aspas.   

Desde a sua chegada ao Ocidente no século XIV o “ser cigano” sempre esteve em risco, uma vez que, como diz Moonen (2000, p. 129), o cigano era visto como quem tinha “uma conduta pouco compatível com os valores culturais europeus da época” (quais são os valores brasileiros, ou dos “iluminados talibaneses decoloniais” hoje?).  

 

1) eram nômades, que nunca paravam muito tempo num mesmo lugar; 2) eram parasitas, que viviam mendigando ou aproveitando-se da credulidade do povo; 3) eram avessos ao trabalho regular; 4) eram desonestos e ladrões; 5) eram pagãos que não acreditavam em Deus e também não tinham religião própria.  

 

A eliminação de ciganos e de sua identidade, utilizando-se de diferentes métodos, é um processo de longas datas. Seja pela assimilação (forçando-os a adotar “novos padrões de comportamento” a partir de “novas ideologias e pensamentos”, impondo religiões dominantes e outros códigos), seja pelo genocídio (tendo como o caso mais emblemático o holocausto cometido pelos nazistas, onde foram mortos entre 250 e 500 mil ciganos) a “ciganofobia” (ou “anticiganismo”) tem sido empregado ao longo da história por diferentes espectros políticos utilizando-se de instrumentos e modelos opressores. Sobre isso Thomas (1994, p. 2) diz que “as culturas coloniais não são simplesmente ideologias que mascaram, mistificam ou racionalizam formas de opressão externas a elas; elas próprias são também expressivas e constitutivas da relação colonial”.

Isso posto, podemos pensar em duas questões acerca da relação entre decolonialidade e assimilação de comunidades ciganas. Primeiro, objetivamente a decolonialidade é um valor norteador fundamental para a autonomia cigana que se pretende a partir da alteridade, do “ponto de vista” cigano, e não do “ponto de vista do branco” (mesmo que eventualmente esse “ponto de vista do branco” seja transmitido por indivíduos ciganos já cooptados pelas estratégias brancas). Segundo, a assimilação objetiva subalternizar o sujeito, desfigurando sua identidade deslocando-o de sua condição e o redesenhando em uma condição outra.

Como reza a Terceira Lei de Newton, o Princípio da Ação e Reação, para toda força de ação existe uma força de reação. Como povos e comunidades tradicionais em contexto urbano, em meio à sociedade moderna, os ciganos brasileiros estão inseridos num sistema dinâmico de relações interculturais que lhes expõem a assimilação e constante reelaboração (identitária, social, cultural). Por isso é de esperar que não exista uma única cultura cigana, estática, cristalizada, homogênea, “congelada”, “engessada”. Podemos encontrar comunidades e indivíduos ciganos em diferentes lugares culturais, compartilhando elementos e características distintas nos campos linguísticos, econômicos, políticos, raciais, religiosos, de gênero etc. Todo cigano é, de alguma forma e em alguma medida, um cigano assimilado, regionalizado e adaptado. “O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado” (LARAIA, 1986, p. 45).

Diante disso não é possível definir o cigano em termos de raça/cor, religião, status social e econômico etc. As comunidades ciganas são plurais, multirraciais (com pessoas brancas, pretas e pardas), multirreligiosas (com pessoas católicas, evangélicas, espíritas etc.), multipolíticas (com pessoas alinhadas politicamente “à esquerda”, “à direita”, apolíticas etc), em geral bilingues (sejam fluentes ou não) etc. Esses elementos, no entanto, não indicam necessariamente que os ciganos que apresentam tais traços se encontram num processo inesperado de assimilação, mas que, uma vez inseridos num determinado contexto são, automaticamente, atores que compõem as relações interétnicas, sem no entanto se desfigurarem enquanto sujeitos ciganos. A identidade étnica cigana não se resume à substratos identitários. Por isso não existe nenhuma “identidade originária cigana pura”; os que defendem isso desconhecem a realidade e estão vislumbrados de forma romântica com um essencialismo cultural imaginário. É a excitação da "puberdade ativística" recente. Quem pensa ser isso possível é carente de mais leitura e sobretudo de conhecimento acerca dos diferentes ciganos.      

A decolonialidade é legítima, menos quando é usada como estratégia política contraditória para colonizar estruturas, tornando-se “decolonialidade” – no momento é o risco que se apresenta aos estudos e ativismos ciganos. A decolonialidade, sem aspas, é o caminho de resistência e desconstrução de conceitos, padrões e perspectivas impostas sobre os povos subalternizados durante séculos. O que está se desenhando é um outro tipo propositivo, a “decolonialidade”, onde alguns se arrogam representantes do “Lugar de Fala” se sobrepondo à diferentes "Lugares de Fala" (que no Brasil são majoritariamente lugares tradicionais). 

Em português claro: é um assalto do lugar de fala por indivíduos que por direito podem falar por si, mas jamais podem falar generalizadamente por todos os ciganos. Falar por todos seria coisa de Talibã, o “decolonial” com aspas, os "recolonizadores", pois gera o desejo descontrolado de controle sobre todos ciganos e não ciganos, seus pensamentos e suas manifestações. É também uma estratégia assimilacionista de eliminação do tradicional que sustenta a ciganidade.

Querem se estabelecer apagando memórias, desmontando construções e queimando reputações através de violência moral, calúnia - crimes previstos (jamais admitirão isso publicamente porque sabem que o que fazem é feio e tem desdobramentos em instâncias das quais querem distância). Querem assimilar "os ciganos", os "estudos ciganos", a "militância" cigana, mas, uma vez desmascarados, o projeto minguou. Abaixo a colonização!   

 

Referências bibliográficas

 

BRASIL. Presidência da República. Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Casa Civil. Brasília, DF, 7 fev. 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm Acesso em: 9 out. 2021.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.

GIDDENS, A. The consequences of modernity. Cambridge: Polity Press, 1990.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um Conceito Antropológico. 24 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. 3ª edição digital revista e atualizada. E-texto n.1. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2000.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção nº 169 sobre povos tribais e indígenas e resolução referente a ação da OIT. Brasília: OIT, 2011. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf  Acesso em: 10 set. 2021.

QUEBRANDO O TABU. Tabilã x EUA: Mariam Chami explica o conflito no Afeganistão. 24 set. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=1628056050868772 Acesso em: 12 set. 2021.

THOMAS, Nicholas. Colonialism’s culture. Anthropology, travel and Government. Cambridge: Polity Press.

WALSH, C. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005. 

 

 

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